Se para lá das eleições “houver atenção política, é possível um médico de família para todos”
28-01-2022 - 06:30
 • Anabela Góis

Em entrevista à Renascença, Pedro Pita Barros defende penalizações para os maus gestores dos hospitais públicos e o copagamento de alguns serviços prestados nos hospitais de forma a controlar os abusos no SNS.

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Pedro Pita Barros, professor de economia na Nova SBE, especializado em Economia da Saúde, apresenta, em entrevista à Renascença, os cinco pontos que podem elevar a qualidade e organização do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

O primeiro é a possibilidade de atribuição de um médico de família a todos os portugueses se o tema passar a ser uma prioridade política, para além dos períodos eleitorais.

Pedro Pita Barros defende ainda a urgência de “contas certas na saúde”, no que classifica como um “problema crónico do SNS”, e da necessidade de “maior autonomia dos hospitais”.

Depois de dois anos em pandemia em que o SNS foi testado ao limite, obrigado a gerir recursos e a alargar as suas capacidades, o que se deve seguir?

Primeiro terminarmos a pandemia. Ainda temos alguns meses pela frente, portanto, vai ser preciso manter algum esforço. Parece-me que nós, como sociedade, estamos a ser demasiado ligeiros com a situação e pode haver surpresas, portanto, o Serviço Nacional de Saúde tem de estar preparado para alguma coisa que possa surgir. Ainda não estamos fora o suficiente para pensar no que aprendemos com a pandemia, para mudar o sistema, esse é o primeiro aspecto.

O segundo, é que mal acabe a pandemia temos de tratar dos profissionais de saúde, no sentido de ver o que foi este período para eles, que foi de muita exigência, e o que se aprende daí para melhorar as suas condições de trabalho, não só materiais mas também temos de repensar a saúde mental e o bem-estar no local de trabalho. Todo este período foi de muita pressão, e muitas coisas foram feitas porque existia essa pressão, não se podem manter em regimes normais de funcionamento.

E portanto vai ter de se perceber o que é funcionou e não funcionou neste tempo de pandemia, incluindo aspectos de liderança, autonomia, gestão, os papéis desempenhados pelos vários profissionais, a flexibilidade para aceitar reajustamentos de funcionamento. Até, se faz sentido manter as novas formas de trabalhar que foram introduzidas, incluindo as teleconsultas e a telemedicina que tinha grandes resistências antes – por parte dos doentes, dos médicos e de quem paga - e que foram ultrapassadas por este estado de emergência. Tudo isso vai exigir uma atenção cuidada para perceber quais é que poderão ser formas de melhorar a saúde e de melhorar o SNS.

Na sua opinião quais é que deveriam ser as três prioridades do próximo Governo?

Isso é fácil: em vez de três até posso dar cinco. A primeira é a promessa sempre repetida de garantir um médico de família a todos os residentes em Portugal. E ponho isso em primeiro lugar porque vai ao centro do que deve ser um sistema de saúde moderno, que é haver um ponto de contacto que acompanhe as pessoas na sua vida regular e que as saiba orientar dentro do sistema de saúde sempre que for necessário.

A razão por que coloco isto em primeiro lugar não é só porque é importante, mas também porque me parece que não se tem aprendido com o facto de todos os Governos, desde há uma década ou mais, prometerem esta medida e nenhum deles conseguir cumprir. E nós temos de pensar porque é que se tem falhado consecutivamente neste objectivo com que todos estão de acordo.

E porque é que tem falhado?

Há uma parte de atenção política. É muito fácil dizer que este é um objetivo durante a campanha e depois quando os Governos começam a funcionar se calhar perde-se a noção de que tem de haver atenção política permanente ao problema.

Também já se percebeu que não é apenas uma questão de se dizer que se contrata, porque há concursos que vão sendo abertos mas não são preenchidos ou, quando são preenchidos acabam por não ser suficientes porque depois assistimos nos meses seguintes à saída de pessoas e eu não sei se são só as reformas ou se há saídas por outros motivos.

É preciso perceber o que é que se tem passado e conseguir uma forma de intervenção de política pública, ou do que quer que lhe queiramos chamar, para garantir que este objetivo é alcançado num prazo relativamente razoável que pode incluir experimentar até novos modelos de organização dos cuidados de saúde primários, outras formas de funcionamento para além das USF (Unidades de Saúde Familiar). Talvez haja outros tipos de flexibilidades organizacionais que podem ser exploradas e com isso tentar garantir essa cobertura de longo prazo. No fundo é olhar para isto como se fosse uma maratona que se está a correr. O médico de família é o maratonista que vai ao nosso lado.

Voltando à lista de prioridades...

Em segundo lugar: contas certas na saúde. Um dos problemas crónicos do Serviço Nacional de Saúde têm sido os pagamentos em atraso nos Hospitais E.P.E. Desde que existem números fiáveis (desde 2011) que se conhece o ciclo infernal das regularizações extraordinárias para suprir faltas de orçamento iniciais. É, portanto, preciso terminar com isso sendo mais claro na autonomia que se dá aos Hospitais, na responsabilização que se cria e nos mecanismos de intervenção para evitar que isso volte a acontecer.

Terceira prioridade: ter capacidade de criar uma política moderna de gestão de recursos humanos na saúde que é, essencialmente, procurar formas diferentes de organização nas unidades, na forma de tratar as pessoas e os profissionais de saúde. Por um lado, o setor público é muito burocratizado, cheio de regras que acabam por criar uma distância enorme entre os profissionais e as direções das unidades, por outro, é natural que profissionais de saúde altamente qualificados queiram ter condições remuneratórias adequadas mas também desenvolvimento profissional em termos de longo prazo. Nunca se pensa nesses termos no setor público, não se acarinham os profissionais de saúde.

Quarta: olhar de forma diferente para a promoção da saúde e prevenção da doença. Criar um organismo ou fazer evoluir um já existente para ter como único objetivo a promoção da saúde e a prevenção da doença. Um dos problemas neste momento é que não se sabe bem quem é que tem essa obrigação. Ao termos um organismo que faça isso, podemos criar o direito de cada cidadão ter uma consulta por ano dedicada à promoção da saúde e esse organismo tem por missão garantir que esse direito é assegurado. Conseguíamos com isto dar mais visibilidade à ideia de promoção da saúde e prevenção da doença do que simplesmente criando programas sobre alimentação e sobre literacia em saúde.

Quinta prioridade: rever a comparticipação dos medicamentos. Rever significa que nem todos têm de mudar. O motivo para olhar para esta questão é que dentro dos orçamentos das famílias de menores rendimentos a despesa com medicamentos ainda é uma componente muito importante do que se gasta com a saúde, mesmo depois de todas as descidas dos preços ao longo do tempo, portanto, é preciso olhar de novo para aquilo que foi sendo feito ao longo dos anos para dar maior proteção a estas pessoas.

Não referiu a questão dos doentes não-covid, muitos dos quais foram deixados para trás por causa da pandemia. A recuperação das listas de espera para consultas, cirurgias e meios de diagnóstico é possível? Como? Com recurso a unidades dos setores privado e social?

Não falei porque é um problema conjuntural, não é permanente como os outros cinco, que são problemas de fundo. A solução depende da rapidez com que se queira recuperar as listas de espera.

Se quisermos avançar mais rapidamente temos de recorrer à capacidade do setor privado e social através de mecanismos adequados, seja colocando a concurso lotes de tratamento e partes da lista de espera, seja fazendo acordos que permitam diluir num prazo relativamente curto por muitas unidades a procura que existe. Tem de se alargar o atual SIGIC (Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia) para esses prestadores.

Se quisermos levar mais tempo é provável que dentro do setor público haja capacidade para fazer alguma recuperação com mecanismos extraordinários. Qualquer que seja a solução, vai sempre exigir verbas adicionais. Mas é um problema conjuntural que me parece menos complicado de resolver: não é imediato, custa dinheiro mas sabemos como fazer.

Dentro desse grupo de coisas a recuperar há algumas mais importantes, como é o caso da oncologia, onde há necessidade de encontrar casos não diagnosticados e também é preciso preparar, já para o futuro, formas de responder à chamada Covid longa, uma vez que os doentes podem ter sequelas da infeção por SARS-CoV-2 durante muito tempo.

Ao nível dos cuidados de proximidade, já falou brevemente na questão dos centros de saúde e das USF, também dos modelos de organização. Acha que estaria na altura de repensar o modelo de Unidades de Saúde Familiar que, quando surgiu há 16 anos, foi muito bem sucedido? Está na altura de reformar esse modelo?

Não sei se reformar ou se perceber como pode evoluir, acho que neste momento terminar a evolução das USF é mais importante do que pensar num novo modelo global. Há uma proposta, que foi retomada pela Iniciativa Liberal, de avançar para as USF modelo C, (Podem ser equipas do sector público ou privado, cooperativo ou social que fazem contrato com o SNS), que estavam previstas desde o início e nunca foram criadas. Isso para mim seria fundamental neste momento.

Portanto avançar para esse modelo...

Sim, essa é uma proposta que está em cima da mesa e que, curiosamente, se aproxima mais do modelo inglês. Neste momento o que me preocupa mais é o facto de, por definição, as USF não terem utentes sem médico de família o que significa que quem não tem médico atribuído cai nas unidades tradicionais, os antigos centros de saúde, ou seja, à medida que vamos criando USF vamos colocando um peso maior nas unidades tradicionais de utentes sem médico de família.

O resultado é que criamos mais polarização entre as unidades que têm muitos utentes sem médico de família e aquelas que não têm nenhum utente sem médico de família. Resolver esse problema com a evolução das USF parece-me mais importante do que estar a procurar novos modelos.

Mas havendo falta de médicos - e como sabemos e referiu muitos concursos ficam sem candidatos - como é que o problema se resolve?

Havendo falta de médicos que queiram trabalhar no SNS… A primeira coisa a saber é se existe em Portugal um número suficiente de médicos que queiram trabalhar no setor público, perceber como é que está a funcionar a demografia dos especialistas em medicina geral e familiar e perceber se poderiam ser atraídos para o setor público e, por outro lado, pensar nas competências profissionais nos cuidados de saúde primários, se não é possível alargar o papel de outros profissionais para apoiar o seguimento de doentes, sejam enfermeiros ou até farmacêuticos nas farmácias de proximidade, se não se poderiam criar “de equipas de família” que substituíssem parte do papel que é desempenhado pelo médico de família, sem prejuízo para o seguimento dos utentes e com isso cobrir de uma forma mais ampla a população. Esse tipo de iniciativa já foi tentado noutros países com algum sucesso em situações de carência, de zonas remotas com falta de profissionais. E nós em Portugal temos boa formação na área da saúde a praticamente todos os níveis, em todas as profissões. E isso é algo que nós devíamos começar a explorar e a pensar como aproveitar.

Portanto, a ideia seria aumentar o rácio médico/enfermeiro nos cuidados de proximidade, fossem USF ou centros de saúde?

Sim, e permitindo alguma flexibilidade nas funções que vão desempenhando. Isto choca muito com as tendências corporativas, com as Ordens e com os Sindicatos, que gostam de ter muito bem estabelecido o que é que cada um pode e não pode fazer, o que é competência de cada um. Mas se pensarmos na melhoria dos cuidados prestados à população se calhar vale a pena ter aqui alguma flexibilidade que permita ver, em alguns locais, profissionais a desempenhar funções que não têm noutros. Era uma área a explorar, aliás, alguns destes aspetos de flexibilidade têm sido explorados por causa da pandemia, inevitavelmente.


Voltando ao início e à tal promessa de dar um médico de família a todos os portugueses, é possível?

Tem de ser possível. Não vai ser possível em seis meses, mas num prazo de três a cinco anos tem de ser possível olhando de uma forma permanente, contínua e ajustando o que for preciso ajustar em termos de políticas públicas para garantir isso.

E quanto ao financiamento do Serviço Nacional de Saúde, fala-se muito em orçamentos plurianuais. Serão viáveis?

Sim, será desejável que as unidades do Serviço Nacional de Saúde possam ter orçamentos plurianuais para conseguirem planear o que vão fazer e como é que vão fazer. Para o seu funcionamento regular era bom que tivessem uma maior estabilidade orçamental.

Embora os orçamentos do Ministério da Saúde sejam anuais porque dependem do Orçamento do Estado poderia haver um esforço para dar maior segurança às unidades, em particular, aos hospitais grandes, eu não sei é se os ministérios da Saúde e das Finanças e os próprios hospitais levam a sério a ideia de planeamento estratégico na preparação de orçamentos. Porque não basta existirem formalmente é preciso pensamento de gestão e a qualidade da gestão pública e ser adequada à existência desses orçamentos plurianuais.

Poderíamos ter um modelo de financiamento associado à produção, por exemplo, com um modelo baseado no valor que é gerado, medido em resultado para a saúde dos utentes, como defende a Associação de Administradores Hospitalares?

Sim, podemos começar a ter esse tipo de modelos mas, neste momento, até dava um passo mais pequeno, que estava previsto mas acabou por não ser integralmente aplicado, que era dar maior autonomia de gestão às unidades que mostrassem ser capazes de gerir bem.

Eu seria até mais dramático, não só dava autonomia de gestão como, a prazo, alterava mesmo as funções ou as valências técnicas que os diferentes hospitais têm em função dos resultados que mostram, ou seja, ter uma forma clara de mostrar que a boa gestão é premiada em vez de ser o contrário.

Atualmente quem cria mais dívida por não ter boa gestão acaba sempre por ter o prémio de ter um reforço de verba adicional. Isso tem de acabar, tem de ser alterado. Agora, para fazer isso a sério, é necessário que os orçamentos iniciais sejam realistas, que sejam conhecidos no início do ano e que tenham um horizonte plurianual de três anos, pelo menos, para que se possa planear a sua gestão. Outra questão é a qualidade de gestão dentro da Saúde em Portugal e, nomeadamente, dentro do SNS, que tem de ser bastante melhorada.

Devemos - e temos - condições para ter um Serviço Nacional de Saúde gratuito?

Sim e não. Isto é, há imensos contactos do cidadão com o Serviço Nacional de Saúde que devem ser gratuitos, mas nos pontos de contacto em que o cidadão pode decidir se utiliza para ajudar a guiar as decisões e evitar o desperdício. Gosto de lembrar o que sucedeu em 2009, quando se fez uma pequena experiência antes das eleições, em que foi determinado que um conjunto de pessoas teria acesso gratuito a medicamentos genéricos e o que sucedeu foi que deixou de haver preocupação com o medicamento. Se a pessoa perdia uma caixa ia buscar outra e, já que era gratuito, levava o medicamento para toda a família. Portanto tudo isso já eram comportamentos abusivos e a sua verificação é muito complicada.

Quer dar exemplos concretos?

Medidas que já foram adotadas: sempre que um doente é referenciado por um médico para um determinado serviço a decisão não cabe ao utente e, portanto, não tem de haver pagamento. Despesas de elevado custo, como intervenções cirúrgicas e tratamentos de oncologia, claramente que a pessoa só faz se precisar e portanto não há a questão do abuso e o custo deve ser completamente suportado pelo SNS.

Há outras que podem servir de guia, por exemplo, ter uma taxa moderadora maior na ida aos serviços de urgência hospitalar do que por ir a um centro de saúde, que neste momento até não tem taxa moderadora faz todo o sentido. Pessoas que sejam reencaminhadas pelo SNS24 para um serviço de saúde não devem pagar taxa moderadora quando vão ao serviço para onde foram direcionados, portanto, é um mecanismo para ajudar a gerir para uma boa utilização dos cuidados de saúde.

Os pagamentos no momento de utilização não são uma forma de financiar o serviço de saúde porque se tivessem de ser em montante suficiente para isso significaria desproteção financeira que é, justamente, um dos motivos pelos quais nós temos Serviços Públicos de saúde.