Seca no Alentejo. "É do pior. Não há água nenhuma, nenhuma, nenhuma..."
31-10-2017 - 15:32
 • Manuela Pires e André Peralta (sonorização)

Terras secas, amarelas, ribeiras só com areia e muito, muito pó no ar. A Renascença faz o retrato da situação que se vive no Alentejo, em resultado da seca, uma fenómeno que atinge todo o país.

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“Este ano é mesmo para esquecer. Não há água nenhuma, nenhuma. É do pior, os animais só comem á mão e temos de ir buscar a água todos os dias, porque o poço está seco”.

O desabafo é de José Carita Nunes, 47 anos, agricultor. Tem uma exploração de gado em Alpalhão, com 120 cabeças de bovinos. Enquanto percorremos de carro as terras secas, amarelas, atravessamos várias ribeiras que só têm areia. É uma nuvem de pó. As vacas estão junto ao poço, mas a água chega todos os dias numa cisterna, porque a do poço desapareceu.

“Aqui, neste terreno, tenho 60 animais e, todos os dias, tenho de ir buscar água para dar ás vacas. E comida também. Já gastei metade das reservas que tinha, já tive de comprar feno, mas vai acabar no próximo mês. Tenho de comprar mais e os preços já estão mais caros."

José Carita Nunes já não sabe o que fazer. Tem 15 hectares de terreno lavrado pronto para fazer a sementeira, mas a terra está tão seca que não vale a pena deitar a semente, porque é deitar dinheiro fora.

Estamos a meio de Outubro e estão 25 graus no Alto Alentejo. A albufeira do Caia está com 28 por cento da capacidade de armazenamento Há dois anos que o tempo seco é uma constante: temperaturas muito elevadas durante muito tempo e falta a chuva.

A presidente da Associação dos Agricultores de Portalegre, Fermelinda Carvalho, fala “numa seca terrível" e diz que "é preciso chover muito no Inverno, porque, caso contrário, as reservas não vão ser repostas"

"A albufeira do Caia tem 28 por cento, uma parte dessa água não se pode utilizar porque está imprópria. A associação de beneficiários do Caia já encerrou a campanha do regadio e, se não chover, estão impossibilitadas as novas culturas do próximo ano", completa.

A água da barragem do Caia não chega às oliveiras de João Curvo, em Vaiamonte no concelho de Monforte. “Vai afectar a produção este ano e para o próximo. As árvores estão a sofrer, a folha está a cair e a azeitona está seca, mirrada, não tem azeite”.

João Curvo tem mais de três mil oliveiras, muitas delas estão ali há mais de 60 anos. “Nesta altura do ano, já devia ter este rosado, vermelho. Mas estão pretas, é uma maturação à força. As azeitonas estão pequenas e se as abrirmos só têm caroço”.

A apanha da azeitona começa em Novembro e João Curvo vai ter de a tirar das árvores. Contudo, a maioria nem vai chegar aos lagares porque “grande parte dela vai cair".

"Se as temperaturas se mantiverem altas, mesmo se chover agora um pouco, a árvore vai criar doença. Nós recebemos à funda e à acidez e, se a azeitona dá muita acidez, os lagares nem a querem. Não compensa."

A quebra este ano é grande, mas a produção do próximo ano também já está comprometida e nem mesmo nos olivais que são regados a água consegue chegar ao fruto.

A seca que destapou a ponte na barragem do Pego do Altar

O ano de 2017 teve a terceira Primavera mais quente em Portugal, desde 1931. Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, o mês de Setembro foi o mais seco dos últimos 87 anos e quase metade do território está em seca severa ou extrema.

Segundo os dados do sistema nacional de informação dos recursos hídricos, das 60 albufeiras monitorizadas, três apresentam disponibilidades hídricas superiores a 80% do volume total e 23 têm disponibilidades inferiores a 40%. A bacia do Sado é a única que está pintada a vermelho, abaixo dos 20 por cento de armazenamento.

A barragem do Pego do Altar, em Alcácer do Sal, está com 8% da sua capacidade de armazenamento. O nível da água na albufeira está tão baixo que deixou a descoberto uma ponte do séc. XIX, submersa há 19 anos.

“Todos os domingos vem gente de todo o lado para ver a ponte”, diz António Vitorino, 86 anos, habitante da aldeia de Santa Susana, considerada por muitos como a mais bonita do Alentejo. É ali perto que fica a barragem do Pego do Altar, que já teve o nome de Salazar, inaugurada em 1948 pelo então presidente do Conselho de Ministros.

A barragem foi construída pelo Estado Novo, precisamente para o aproveitamento das águas para a agricultura no vale do Sado e para a produção hidroeléctrica. A albufeira é um ponto turístico, sobretudo para a pesca desportiva, mas no último ano, a água desapareceu.

Antigamente, a água da albufeira chegava até bem perto da estrada alcatroada, num dos extremos da aldeia de Santa Susana. Agora, é preciso andar muito para encontrar a ponte e, sob as arcadas da estrutura, há apenas um charco. A terra está gretada, seca, amarela.

A água desapareceu, o que tem vindo a acontecer ao longo dos últimos três anos. Em Outubro do ano passado, a capacidade da barragem do Pego do Altar era de 18 por cento. Agora, está nos 8 por cento.

Gonçalo Lince de Faria é o coordenador da Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Sado, que gere as barragens do Pego do Altar e de Vale do Gaio, e diz que, nesta altura, “as duas barragens estão completamente vazias", mas este quadro se seca "já se vem arrastando há 3 anos. Desde essa altura que temos regas por rateio”.

O ano passado já se registou uma quebra da produção de arroz e, este ano, ainda foi maior: reduziu 40 por cento. Gonçalo Lince de Faria diz que, se o tempo continuar assim, se não chover, para o próximo ano não há campanha do arroz.

A barragem do Pego do Altar não tem qualquer alternativa de abastecimento, mas a de Vale do Gaio pode receber água de Alqueva. Contudo, os preços são tão elevados que os agricultores da associação decidiram não comprar água à EDIA. “A cultura do arroz precisa de muita água e com consumos elevados de água, os preços praticados pela EDA são insuportáveis”, explica Gonçalo Lince de Faria.

Apoios do Ministério da Agricultura tardam em chegar

O ministro da Agricultura, Capoulas Santos, anunciou várias medidas de apoio aos agricultores no que toca à alimentação e ao abeberamento para os animais. Esses apoios rondam os 500 milhões de euros, mas a verdade é que tardam em chegar ao terreno.

José Carita Nunes pediu uma cisterna emprestada para poder transportar a água até aos animais. “Há quase dois meses que fiz o projecto para comprar uma cisterna, mas, até agora, ainda não tive resposta", desabafa.

Este é apenas um dos casos que chegou à Associação dos Agricultores de Portalegre. Fermelinda Carvalho diz que houve "50 projectos apresentados, mas ainda sem qualquer resposta", quando "é agora que os agricultores precisam da ajuda".

Quanto à antecipação das ajudas da União Europeia anunciada pelo ministro Capoulas Santos, a presidente da Associação dos Agricultores de Portalegre não vê qualquer novidade, porque "no ano passado aconteceu precisamente o mesmo".

Há quatro anos que não se fiscalizam as medidas sugeridas para o uso eficiente da água

Segundo o boletim climatológico do IPMA de 30 de Setembro, o índice de água no solo apresentava em grande parte das regiões do interior e sul de Portugal valores inferiores a 20%. As albufeiras estão com níveis muito baixos e Carla Graça, especialista em recursos hídricos, alerta que a seca está a provocar a diminuição dos caudais dos rios e a substituição da água doce por água salgada, o que afecta terrenos agrícolas e aquíferos.

A vice-presidente da Associação Zero diz que é preciso tomar medidas e lembra que em 2005 foi aprovado o programa nacional para o uso eficiente da água, mas quase nada foi feito "algumas medidas foram tomadas pelas escolas, pelas ONG, medidas de sensibilização e dicas que podem estar a contribuir para alguma poupança de água.

Talvez 1/3 das medidas estejam parcialmente em prática, mas o que nós dizemos é que desde 2012 não há qualquer avaliação da eficácia do plano".

Carla Graça adianta ainda que uma das medidas que foi sugerida e que volta agora a ser adoptada pela comissão da seca era avaliar as captações dos solos para saber que água é retirada" mas a administração não tem capacidade para controlar, como não é preciso uma licença não há noção da quantidade de água que é extraída do solo".

A falta de água nas barragens está a ter outras implicações nomeadamente na produção de energia com o aumento do recurso ao carvão. Carla Graça diz que "há uma grande diminuição da produção de electricidade com base nas barragens e estamos a recorrer às centrais termoeléctricas. Em relação ao ano passado tivemos um aumento das emissões em cerca de 70%."