"Não enterrem isto". O apelo da mãe de Rita, doente da Raríssimas
14-12-2017 - 19:53
 • Marta Grosso

A Raríssimas é "a casa" de Rita, mas também do Miguel e de muitos doentes raros. Os pais dizem que na Casa dos Marcos faz-se um trabalho "impecável", que pode morrer devido ao caso que envolve a presidente Paula Brito e Costa.

A preocupação é visível nos rostos dos pais que chegam à Casa dos Marcos, na Moita. Não querem que o escândalo que envolve a presidente da associação Raríssimas destrua o único centro a que podem recorrer para tratar os seus filhos.

“Não deixem morrer isto”, pede a mãe de Rita.

Com 34 anos, Rita não faz nada sozinha e até precisa de fraldas. “É pior do que um bebé, porque um bebé qualquer pessoa fica com ele e com ela não”, explica a mãe.

Durante três dias, esta mãe que visita a filha todos os dias não pôde ir ao centro. Mas estava descansada. “Em 30 anos, a primeira vez que a deixei foi aqui, nesta casa. O pai morreu e eu não tenho condições [físicas] – deixei-a cair uma série de vezes e só havia esta hipótese."

“Ela tem dois irmãos e tem um irmão tetraplégico. A única diferença é que ele tem a cabeça a funcionar. Eu não tenho outra alternativa para a Rita [senão a Casa dos Marcos]”, admite a mãe.

Tem “três hérnias, uma calcificação no ombro”. “Nem sequer pegar nela consigo para a pôr num carro. Portanto, isto é a casa dela”, explica, enquanto vai dando de comer e beber à filha.

Rita tem síndrome de Leigh e, por isso, "em vez de açúcar, acumula ácido no sangue". "Pode entrar em coma com muita facilidade”, explica a mãe.

Ao lado, Lisete Amaro reforça: “é uma menina que exige muitos cuidados. Muitos, muitos”.

“Uma coisa é serem bem tratados, outra coisa é serem felizes”

Lisete é mãe de um homem de 30 anos. “Tem o síndrome de Angelman e não tem faculdades mentais absolutamente nenhumas. Tem uma, melhor do que os outros todos: é saber dar amor. Isso ele sabe mais do que toda a gente. Mas não sabe mais nada”, afirma.

A Casa dos Marcos é a casa de Miguel há décadas. “Com alguns problemas de saúde que tenho vindo a ter, o meu grande medo era morrer. Não era ficar doente, era morrer", conta. Deixou de ter esse medo, mas, agora, com toda a polémica em volta de Paula Brito e Costa, a criadora da Raríssimas e da Casa dos Marcos (construída em nome do seu filho, também ele portador de uma doença rara, Cornelia de Lange), o medo voltou.

“Porque se eu morro... deixo de ter o sítio onde ele é feliz”, explica. “Porque há uma grande diferença! As pessoas não percebem: uma coisa é ser bem cuidado – e são muito bem cuidados aqui – e outra coisa é serem felizes”, reforça.

Trabalhadores "fantásticos"

A opinião sobre o trabalho prestado pelos trabalhadores na Casa dos Marcos é unânime: são uma extensão da família.

“Eu não sei donde é que aqueles homens e mulheres foram buscar a excepcionalidade. São fantásticos”, afirma Lisete Amaro com assertividade, logo apoiada pelas outras duas mães que a acompanham. “Os terapeutas são excelentes”.

O clima de afectividade é visível e consegue até sentir-se. Não há criança ou adulto que saia ou entre na Casa a chorar ou com algum sinal de apreensão. Há proximidade entre utentes, famílias e profissionais.

“Tudo isto vem dos técnicos, sim, mas os técnicos foram orientados por alguém. E se calhar isto também era um sonho da Paula, um sonho que os miúdos fossem felizes”, afirma Lisete Amaro.

“O Estado não sabe o que anda a fazer”

Lisete chega bem-disposta ao grupo de mães que se juntou naquele corredor. “Alguém quer café”, pergunta? A mãe de Rita aceita e paga os dois cafezinhos, enquanto Lisete fala com a Renascença.

Conhece Paula Brito e Costa desde os tempos em que a agora ex-presidente da Raríssimas geria um quiosque. Acompanhou o crescimento da instituição e do sonho da Casa. “Porque é que tudo isto aconteceu se estava tudo na perfeição? Porque só as pessoas capazes de grandes feitos também são capazes de feitos muito negativos”, defende.

“Não há grande surpresa nisto”, admite, mas “os psicólogos se calhar conseguem explicar isto melhor. Eu acho que ela pensou: fui eu que fiz, sou eu que mando, é meu, está a funcionar bem, o mérito é meu, portanto eu mereço. E o resto é feitio, como diz o outro”.

Lisete é peremptória: “esta casa nunca quis ser subsidiodependente. O Estado tem de ser seduzido para pagar aquilo que ele próprio deveria fazer. É tão simples quanto isto”.

O dedo, aponta-o ao Estado, que trata a saúde mental como “o parente que não existe. Já não é o pobre, é o que não existe”. E exemplifica com o fecho de hospitais de saúde mental: “O Estado não sabe o que anda a fazer."

“Há doenças raras que não são mentais, mas a grande maioria, além de um grande atraso no desenvolvimento, é mesmo um problema de saúde mental”, explica, para raciocinar a seguir: se “o Estado não sabe o que está a fazer”, faz sentido que pague a alguém que o faça.

“Se não sabemos limpar um vidro em casa, pagamos a alguém que o faça. E depois vamos lá ver se o vidro está bem limpo. O Estado tem de fazer isto. E não fez. E não vieram ver e não querem saber, porque empurram para a frente”, critica.

“Haja alguém que faça aquilo que eles não são capazes de fazer. E esse alguém foi a Raríssimas, que fez um trabalho digno, um trabalho impecável, reuniu todas as vontades, tanto pessoais como institucionais, como privadas, públicas, para construir uma casa que desse apoio a doentes mentais com doenças raras”, defende ainda a mãe do Miguel.

“É preciso separar as águas”

“Que se julgue o todo pela parte é que me dá cabo da cabeça”, reage Lisete com emoção. “É preciso separar as águas”, acrescenta uma outra mãe, que aguarda pelo tratamento do seu filho de seis anos.

Vai à Casa dos Marcos duas vezes por semana para fazer terapia ocupacional e da fala. A mãe deste menino é o rosto mais revelador da preocupação que todas sentem.

“Há empresas que já estão a tirar o apoio e logo aí não sabem distinguir que quem estão a prejudicar não é a senhora, é os utentes”, afirma. “Quem está a sair prejudicado é quem necessita desta casa”, reforça, para logo acrescentar que, além dos utentes, “há as pessoas que dão tudo delas por estes meninos e que também têm a vida virada do avesso, que não sabem o dia de amanhã”.

“Há coisas que temos que separar e não podemos deixar que estas coisas se acabem, porque eles não têm ninguém”, reforça ainda a mãe de Rita.

Estas mães lembram que os utentes desta casa, devido à especificidade das suas doenças, não sabem ler nem escrever. Não podem, por isso, frequentar as escolas normais. Na Casa dos Marcos encontram um Centro de Apoio Ocupacional que ajuda a ultrapassar essa dificuldade.

A Casa dos Marcos é uma instituição particular de solidariedade social (IPSS). Os utentes podem ou não ser sócios (sendo que têm mais vantagens se forem) e pagam de acordo com os seus rendimentos.

Uma das valências desta instituição são os cuidados continuados e paliativos – são “os que estão lá em baixo a morrer”, define a mãe de Rita. “É uma dor que não passa pela cabeça de ninguém. Mesmo o pessoal que ali está a trabalhar… aquilo é uma coisa doida”, acrescenta.

Mas ninguém que visite a Casa dos Marcos consegue perceber isso. Não há um profissional que se aviste, mesmo os que descem e sobem as escadas que dão acesso aos cuidados paliativos e continuados, que mostre tristeza ou saturação.

Nessas mesmas escadas, por cima de um painel das fotografias de 130 funcionários, lê-se: “Onde tu chegares, eu chegarei”.

“São situações que são demasiado importantes e que não se podem juntar no mesmo barco”, lembra a mãe de Rita, que ainda hoje pensava: “O que é que eu faço [se a Casa for afectada]? Vou para lá, vou ajudar. Porque as pessoas também têm de receber”.

À despedida, uma mão no braço com um apelo: “Não enterrem isto”.