​A Raquel Tavares somos todos nós
17-01-2020 - 06:45

Portugal é um país soterrado em problemas mentais, porque é um país soterrado em códigos de silêncio. Temos uma imensa violência mental debaixo da capa dos brandos costumes. Falem. Sigam o exemplo da Raquel Tavares.

Cada um de nós vê a realidade com lentes próprias, especiais, intransmissíveis. Neste quadro único e insubstituível, existem alarmes que podem ser vistos como as nossas obsessões, são aqueles temas que levam os nossos amigos a dizer "Oh, lá vem ele falar daquilo outra vez". Um dos meus alarmes é a doença mental dos famosos. À medida que vou conhecendo novos casos, vou construindo um mapa com rostos: de Kevin Love, jogador da NBA, a André Gomes, jogador de futebol, passando por cantoras como Marta Ren, modelos como Ashley Graham e escritoras como Lena Dunham, tenho uma lista mental de famosos que reconheceram os seus problemas mentais.

Porquê? Quando revela esta bravura, quando deixa cair a sua persona, quando deixa de falar com a voz postiça da fama e a assume a sua voz interior, o famoso não está só a salvar a sua sanidade e talvez a sua própria vida, está a salvar muitas pessoas anónimas que ainda têm vergonha em assumir a doença mental. Quando assume a depressão, o famoso está a liderar pelo exemplo e salva literalmente vidas com essa atitude. A Raquel Tavares, estou certo, já salvou vidas com a sua franqueza tão rara no meio artístico, sobretudo num meio pequeno como o português.

A doença mental tem de ser vista como a doença física: o cérebro faz parte da nossa biologia, e as seus fluxos químicos podem ser danificados pelo trauma mental da mesma forma que os fluxos sanguíneos podem ser danificados pelo trauma físico. Uma pessoa com uma doença mental não é "um fraco que não aguenta", é só uma pessoa. E todos nós passamos por estes infernos interiores. Ninguém, nem a diva nem o herói, é imune à depressão, ao burnout, à ansiedade, às neuroses ou maleitas ainda piores. A questão é se temos ou não a coragem para assumir o problema e para depois tratá-lo na medida do possível. Às vezes não é possível curá-lo. Às vezes, o problema mental é crónico. Mas, mais uma vez, convém normalizar: a dor mental pode ser crónica, mas os diabetes também são. Aprende-se a viver com essa limitação. Não é o fim.

É por tudo isto que gostava de sublinhar a coragem de Raquel Tavares, que assumiu a sua profunda tristeza provocada pela carreira e, sim, pela tensão do sucesso. Fez-me lembrar os malogrados Robert Enke e Anthony Bourdain: a pressão do sucesso é isso mesmo, uma pressão, um rolo compressor que não admite pausas, a bicicleta que não pode parar. Se lerem a biografia do Robert Enke, “Uma Vida curta Demais”, vão perceber isso. Para se salvar, para se salvar do suicídio que acabaria por cometer, Enke “só” tinha de ter feito uma confissão pública como esta de Raquel Tavares. Ao longo do livro, sente-se que ele fica perto desse momento, mas recua sempre devido à persona que construiu: um guarda-redes é duro e não tem momentos de hesitação, até porque o futebol, com o seu ambiente de caserna, não tolera fracos! Mas reconhecer este tipo de problema não revela fraqueza; pelo contrário, revela uma coragem de Ulisses. E, já agora, Ulisses chorava muito.

O sucesso soterrou Raquel Tavares e ela teve a coragem para reconhecer esse paradoxo. Teve a coragem para assumir que não se sente bem no actual cerco mediático a que os criadores estão sujeitos. Nunca foi tão difícil a exposição mediática, nunca. É abrasiva, é destruidora, limita-nos, corta-nos a liberdade de pensar, dizer, pensar, actuar, cantar. Há uma brutal ditadura da "coolness", que é uma espécie de excel fechado que impõe comportamentos e opiniões. Não sou do fado, a minha fadista preferida chama-se Marta Ren e canta soul. Não vou estar aqui a dizer que vou passar a ouvir a música de Raquel Tavares. Isso nem importa agora. O que estou a dizer é que, no actual espaço público português, não há ninguém mais corajoso do que Raquel Tavares. Famosos ou não, sigam o exemplo dela. Peçam ajuda. Não sejam esquisitos, falem com o padre, com o psicólogo, com o psiquiatra, com o periquito, falem. Tal como Cristo nos ensinou, nomeiem e verbalizem o vosso mal, porque não há nada mais mortífero do que um segredo a gangrenar na alma. Falem. Nomeiam. Portugal é um país soterrado em problemas mentais, porque é um país soterrado em códigos de silêncio. Temos uma imensa violência mental debaixo da capa dos brandos costumes. Falem. Sigam o exemplo da Raquel Tavares.

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