Sono nas mulheres é mais complexo. E está na hora de o estudarmos
16-05-2018 - 06:00
 • Ana Carrilho

Tema vai estar em destaque no Lisbon Sleep Summit, que começa esta quarta-feira na Universidade Católica. A Renascença falou com a neurologista Teresa Paiva, especialista em Medicina do Sono.

O sono nas mulheres é diferente e mais complexo que nos homens. Associado aos ciclos de vida e hormonais, é uma área de enorme desconhecimento. Se acrescentarmos os estilos de vida atuais – sociais e culturais - o impacto sobre o sono nas mulheres ainda é maior. Porque a mulher desempenha cada vez mais papéis. Aos tradicionais de mulher, esposa e mãe, acrescenta-se o de cuidadora, trabalhadora e ainda por cima, com a obrigação de ser competitiva.

Para a neurologista e especialista em Medicina do Sono Teresa Paiva, são razões mais que suficientes para se intensificar o estudo do sono nas mulheres. Daí, a organização do Lisbon Sleep Summit, que decorre a partir desta quarta-feira e até sábado na Universidade Católica Portuguesa, em que vão ser apresentados meia centena de trabalhos científicos.

Teresa Paiva defende que é preciso avaliar os fatores influenciadores do sono da mulher e discutir as diferenças entre os géneros na Medicina do Sono. E manifestou as suas preocupações em entrevista à Renascença.

Sabe-se muito pouco sobre o sono nas mulheres

Teresa Paiva, neurologista e responsável pelo Centro de Medicina do Sono, uma das três organizadoras do Lisbon Sleep Summit, com Helena Rebelo Pinto e Margarida Gaspar de Matos, aponta três argumentos para o tema da conferência: porque o sono nas mulheres é um assunto globalmente esquecido mas de grande complexidade, ligada ao sexo feminino. “É mais fácil estudar os homens, sem complicações hormonais.

Felizmente já se começa a perceber que as mulheres são diferentes”, desabafa a neurologista. A terceira razão prende-se com as alterações sócio-culturais que dão papéis acrescidos às mulheres, “embora continuem a ter posições altamente desprivilegiadas em termos de salários, carreiras, encargos com a família, violência, vitimização, culpa e solidão”. É para estudar como é que o sono se relaciona com todos estes desafios que se realiza a conferência em que vão estar médicos, cientistas, entidades públicas e privadas e representantes da sociedade civil. O objetivo é criar uma rede de pessoas para participar na discussão e criação de soluções, inclusive legislativas.

Stress, culpa e vitimização roubam o sono às mulheres

Stress, o nível acrescido e disperso de responsabilidades e a sensação de culpa. Na opinião da neurologista são três fatores que, misturados em diferentes doses, afetam o sono das mulheres.

Teresa Paiva pega no exemplo da culpa. “As mulheres sentem muita culpa em relação aos filhos porque chegam tarde; porque têm que trabalhar; porque deviam estar mais bonitas, mais magras, mais arranjadas, porque deviam estar sempre melhor do que aquilo que estão. E esta é imposição cultural terrível. Com todas estas questões, a mulher fica sempre numa posição desvantajosa. Tem que ser (boa) profissional e competitiva. Quantas vezes não é o garante económico de uma família”.

A vitimização é outro fator que Teresa Paiva considera que tem que ser equacionado. A mulher é sujeita a mais violência que o homem em todas as estatísticas do mundo: nos locais de trabalho é mais frequentemente alvo de assédio sexual e moral, em casa são agredidas pelos maridos ou companheiros, quando não mortas.

“O que se faz é de facto assustador e tem passado de uma forma muito encapotada porque as pessoas têm vergonha de se queixar. E essas agressões têm impacto na vida das pessoas ao longo de muitos anos. Isto também se passa em Portugal e as estatísticas não podem ser ignoradas”. O stress, a depressão e as dores no corpo ou na cabeça têm uma ação direta sobre o sono.

Tem insónias? Não desespere. Há tratamento sem soluções milagrosas

As insónias são o distúrbio do sono que mais afeta as mulheres, mas a neurologista Teresa Paiva garante que há tratamento e “de preferência, sem remédios”.

As insónias são tratáveis desde que se identifiquem as causas. Raramente têm uma causa única; podem ser, três, quatro, cinco ou dez e tem que se avaliar cada uma para tratar bem a insónia, diz a especialista que avisa que “ninguém pode dizer que trata todas as insónias do mundo. Se disser, é um aldrabão”.

Fica ainda outro conselho: não ir atrás do “remédio milagroso” que deu resultado com a vizinha ou atrás dos anúncios que prometem uma noite a dormir graças a um comprimido ou spray.

Se tratarmos bem o sono, ele trata-nos bem

Este é o princípio e, segundo Teresa Paiva, podemos tratar bem o sono, dormindo a horas mais ou menos certas. E ouvindo sempre os sinais do corpo, quando nos diz “estás cansado, vai dormir; agora, já descansaste, vai trabalhar ou vai sair”. O nosso corpo dá-nos imensas dicas e temos que estar atentos, aconselha Teresa Paiva.

Ter uma vida regular com rotinas, fazer exercício físico, apanhar sol de manhã e à noite, não levar preocupações para cama. E depois, não “catastrofizar” - às vezes as mulheres acham que são as pessoas mais infelizes do mundo – e relativizar. Porque se dá um peso pequeno a uma coisa que se achava que era enorme, aconselha Teresa Paiva. Se o problema for grande, teremos que escolher ir atrás dele ou transformarmos uma coisa má noutra que tem algo de bom. E isso é muito importante para o sono porque há uma reorganização.

E aquelas dicas caseiras que alegadamente ajudam à chegada do “João Pestana”? Leite morno e chá de ervas só fazem as pessoas ter vontade de ir à casa de banho, acordam de noite e lá interrompem o sono. Não servem. O banho, se não for muito quente ou muito frio, ajuda admite a especialista do sono Teresa Paiva, que confessa não usar despertador para acordar. "Só quando preciso de me levantar mais cedo”.

Tem horário flexível? Quer dizer que trabalha imenso e as crianças é que sofrem

“A coisa que mais me assusta é quando alguém me diz que tem horário flexível; já sei que trabalha imenso”, afirma categoricamente a neurologista Teresa Paiva que se confessa quase espantada quando um doente lhe revela que trabalha das 9h00 às 17h00 ou 18h00. Abertamente contra a política das pessoas trabalharem por objetivos, denuncia o “usar e deitar fora” praticado por algumas empresas. “Agora usa, mas se o trabalhador tem uma doença, por exemplo, uma depressão, arranja-se maneira de ir embora porque há não sei quantos à espera para ocupar o lugar. Isto é uma violência!

Os pais começam a trabalhar cada vez mais cedo e chegam a casa mais tarde. Por isso, têm que deixar os filhos nos infantários e escolas ainda mais cedo. “Isto faz mal às crianças. Estão mais tempo na escola que os adultos no trabalho.” O cansaço é de todos e na opinião da especialista do sono, os pais não conseguem impor uma autoridade serena. Para acalmar as crianças começa aquilo a que Teresa Paiva chama de “dança das camas”, ninguém dorme o que precisa e como deve ser. Na manhã seguinte, o cansaço continua potenciado pelos gritos de pressa e nervos.

“Toda a família vai sofrer com estes impactos. E como se sabe, o sono das crianças é essencial para o crescimento e para a saúde ao longo da vida. Se os pais ou mães têm uma vida de muito stress vão ter esgotamentos, tomar mais medicamentos, aumentar o consumo de serviços médicos. Estamos aqui a arranjar uma mistura explosiva que vai ter custos terríveis na sociedade daqui a uns anos. Isso é assustador”, adverte a médica Teresa Paiva que admite que todos temos que trabalhar, mas sem esquecer as regras de equilíbrio com o descanso, alimentação saudável, exercício, apanhar sol e ter uma vida social agradável.