Amanhecerá
23-03-2020 - 06:50
 • Ricardo Fonseca Mota*

Vamos fechar-nos enquanto seres, comunidades e povos? Em que medida iremos abdicar do toque? Sejamos capazes de resistir a esta guerra aos afectos. O mundo, tal como o conhecemos, acabou.

Muros - É da nossa natureza reagir com espanto à novidade. Neste momento, à entrada da segunda semana de isolamento, vivemos ainda um certo entusiasmo. Sentimo-nos unidos, protagonistas de um momento histórico e esperançosos de um final feliz. Porém, sabemos que a incerteza é a génese de todas as ansiedades. Respondemos a ela com movimentos que a apaziguam. Por vezes o humor, outras a busca do concreto, a maioria delas a elaboração de explicações para o inefável. Apressamo-nos a entregar a Deus a culpa, a aceitar a ira do planeta, a odiar o Oriente, a considerar que o inimigo oculto não é um vírus mas sim uma oligarquia insaciável. Desta vez, a incerteza irá ser fiel a si mesma e levar-nos-á ao limite. Receio o que se irá passar daqui a umas semanas se tudo permanecer assim, como se espera, ou piorar, como se teme. Não escaparemos a esta alegoria da caverna onde estamos metidos sem saber quando dela sairemos, cegos desse novo mundo que aí vem. Do breu transitaremos para uma luz diferente. Saibamos usá-la como soubemos entender as estrelas e dominar o fogo. É certo que alguns sentirão saudades da escuridão. Alguns lembrarão que estávamos mais seguros interrompidos uns dos outros. Saibamos então pensar, discutir e cooperar. Os muros são um problema com o qual, apesar de tudo, temos sabido lidar ao longo dos nossos tempos. Mas os muros vivem dentro da cabeça e dos corpos de alguns de nós. Se permitimos que se propaguem tornar-se-ão uma pandemia bem mais perigosa do que esta.

Tempo – A noção de tempo transforma-se de geração para geração. Dir-me-ão que sempre foi assim, em particular desde a Revolução Industrial. No entanto, é indesmentível que as últimas décadas imprimiram uma aceleração intensa que nos trouxe aos dias vertiginosos de hoje. Estamos mais repentistas, planos, irritadiços e amuados, frívolos, entediados, consumistas, individualistas. Queremos ver primeiro, fazer primeiro. Sobretudo, ter primeiro. O dia de hoje é um grande teste à nossa forma de viver.

Dentro e fora - Este recolhimento imposto pela pandemia do COVID-19 conduz-nos a um cair para dentro. Não no sentido que nos acostumámos, mais primário, egoísta, mas no sentido mais útil, o da introspecção, do questionamento. Muitos de nós estão a sentir o impulso de se expandirem para o outro, desta feita tocados pela igualdade. Porque nestes assuntos de morrer ainda somos todos iguais.

Isolamento – Os primeiros dias de isolamento demonstraram que não estamos verdadeiramente isolados. Mais do que numa ilha, vivemos hoje numa espécie de península. A internet e as redes sociais transformam a nossa condição de isolados em peninsulados.

Criatividade – Assisto e participo com alegria à emersão de vários movimentos de criatividade e partilha. As redes sociais virtuais (sim, porque existem as outras, as verdadeiras, temporariamente interrompidas) estão ao rubro com projectos a aparecer diariamente. Nesta primeira semana assisti virtualmente a dezenas de leituras de histórias infantis, leituras de poemas, peças de teatro, contos tradicionais, concertos. Li dezenas de crónicas e diários, acompanhei um folhetim e uma desgarrada de fado na Lisboa deserta, apreciei pinturas e ilustrações inéditas. Iniciei a escrita deste texto depois de assistir através do Instagram a um concerto do The Legendary Tigerman. Contudo, não são apenas os artistas a encontrar na criatividade um recurso de transformação pessoal e colectiva. Ela quase que se impôs e está a ser (re)descoberta. Talvez esta seja a melhor de todas as notícias em momentos tão inverosímeis. A falta que nos tem feito o tédio.

Educação – A criatividade e a cooperação são duas dimensões humanas em evidência nestes dias. Todavia, o seu desenvolvimento encontra bastantes barreiras nas nossas escolas. Há muitos anos (demasiados) que preparamos crianças e jovens para serem competitivos, individualistas, preguiçosos e desligados do mundo, da História, do pensamento e da língua. Apesar da evolução tecnológica continuamos a ser um corpo só. Somos seres de relação, de afecto, e um dos nossos impulsos mais básicos é o de criar, dar forma, desenvolver, interferir na matéria, destruir. Fico feliz por constatar que as comunidades ainda sabem fazê-lo. Mas vivo preocupado enquanto existir uma criança ou um jovem que manifeste desinteresse, às vezes susto, perante o vazio, uma folha branca, perante o silêncio.

Máscaras – A máscara tem sido uma das imagens mais fortes destes tempos de incerteza e desespero. Apesar das informações contraditórias quanto às recomendações da sua utilização, uma boa parte das pessoas decidiu utilizá-la. A procura superou a oferta e começámos a ver pessoas no supermercado com garrafões de água e sacos de plástico na cabeça, e até pensos higiénicos sobre o nariz. Somos muito vulneráveis ao medo e só ele poderá explicar comportamentos tão desesperados. De repente, somos todos iguais. Ninguém está imune a este inimigo invisível. E, de repente, estamos a trabalhar no escritório improvisado na nossa casa. Realizamos as mesmas tarefas de sempre mas podemos fazê-lo de chinelos, com o cabelo despenteado, sem maquilhagem. Participamos em reuniões por videoconferência e ninguém se senta no topo da mesa. Cada um vai buscar o seu café. Munidos delas, caíram-nos as máscaras.

Saúde – Andamos obcecados com a doença desde que a ciência é ciência. Não dedicamos tempo suficiente a estudar os sãos. Saúde não é ausência de doença. Saúde mental não é ausência de doença mental. Saúde não é uma questão de azar ou castigo. Saúde não é uma escolha individual. Saúde é um sistema comunitário. Somos um corpo só. Os tempos que vivemos são de extrema exigência psicológica. A condição de isolamento social, associada à incerteza e ao medo, levará muitas pessoas aos seus limites. As relações familiares protegem-se nas suas rotinas titânicas, agora ausentes. Esta imersão colocar-nos-á à prova.

É evidente que este texto é um exercício inútil de abstracção. Esta não é a realidade dos doentes e dos seus familiares, dos profissionais de saúde e suas famílias, das pessoas em trânsito retidas em aeroportos e cruzeiros, impedidas de regressar a casa, dos sem-abrigo, das crianças sem internet excluídas das actuais actividades escolares, das vítimas de violência doméstica fechadas em casa com os agressores. Esta é apenas a visão de um privilegiado.

À imagem do que sucedeu após o 11 de Setembro, esta pandemia irá transformar as nossas vidas profundamente. Se em 2001 a noção de segurança foi reconfigurada universalmente, agora em 2020 vamos ver modificadas as nossas noções de proximidade, de confiança no que vem de fora, no que é bárbaro e invasor. Porém, não se trata de uma batalha de nós contra os outros. Não há outros. O perigo não vem dos outros. Vamos fechar-nos enquanto seres, comunidades e povos? Em que medida iremos abdicar do toque? Sejamos capazes de resistir a esta guerra aos afectos. O mundo, tal como o conhecemos, acabou.

Amanhecerá diferente, mas amanhecerá.

*Ricardo Fonseca Mota vive em Tábua, mas nasceu em Lisboa em 1987. O seu romance de estreia, "Fredo", venceu o Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís e foi semifinalista do Oceanos - Prémio de Literatura em Língua Portuguesa em 2017. "As Aves Não Têm Céu" é o segundo romance. Licenciado pela Universidade de Coimbra é, além de escritor, psicólogo clínico.