Geórgia. Do bom exemplo à pandemia importada por negligência
24-11-2020 - 06:33
 • Adrian Scoffham*

A pandemia chegou em força à Geórgia no verão, mais por culpa própria do que por fatores externos, argumenta este inglês que vive no país há sete anos. Mas se alguém consegue ultrapassar isto, conclui, são os georgianos que já passaram por crises mais graves no passado recente.

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A história da pandemia na Geórgia é, em larga medida, composta por duas partes. A primeira reação foi rápida, eficiente e colocou a vida humana acima de tudo o resto – deixando a Geórgia entre os países mais bem-sucedidos na prevenção da proliferação do vírus. O que se passou desde o verão é o absoluto contrário – agora temos uma das taxas de infeção mais altas do mundo, com os hospitais sobrelotados e as pessoas a ignorar os avisos para manter distâncias sociais e comportar-se de forma responsável.

Como é que isto aconteceu? Como é que se passa de ser um dos melhores para um dos piores? Como sempre, não há respostas simples, antes há camadas de erosão, compostas por complacência, indiferença, autointeresse e frieza de coração. O que nos comoveu em março, abril e maio foi a excelência da resposta à pandemia – o Governo passou efetivamente a gestão da situação para um conjunto de três sábios que decidiam as políticas e faziam as regras. Havia limites à circulação automóvel, recolher obrigatório para evitar saídas à noite e proibição de circulação entre cidades. Tudo isto foi difícil e tornou a vida mais desagradável, mas havia um contrato social e as pessoas compreendiam que os hospitais não conseguiriam lidar com as crises a que assistíamos na Europa, por isso agiram de forma responsável.


De todo o mundo choviam elogios à forma como a Geórgia estava a gerir os surtos e a manter os números de infetados muito baixos, como os rastreios e os inquéritos estavam a funcionar tão bem e como isso seria benéfico para a Geórgia enquanto destino turístico no mundo pós-pandemia. Mas às vezes os elogios podem chegar cedo de mais e podem até ser mortíferos. Parece que foi isso que aconteceu a esta nação valente. Aguentámos com o encerramento das fronteiras a partir de março e, de certa forma, essas fronteiras continuam fechadas. Em maio o meu pai morreu em Inglaterra e tornou-se impossível viajar – em larga medida porque, não sendo cidadão georgiano, não sabia se poderia voltar. Estas questões continuam a afetar muitos de nós que optámos por viver na Geórgia.

Passámos de uma situação em que sacrificámos as nossas liberdades, o nosso trabalho, as nossas relações e amizades para prevenir uma pandemia, para ter de viver uma pandemia importada por negligência. A fronteira entre a Turquia e a Geórgia manteve-se aberta para camionistas – que na maioria se dirigiam à cidade portuária de Batumi, na costa ocidental – com muito poucos controlos sanitários. É bem sabido que os camionistas gostam de aproveitar tudo aquilo que uma cidade com boa vida noturna tem para oferecer e foi sem grande surpresa que os primeiros surtos descontrolados do vírus se verificaram em Batumi no verão. Para além disto o país permitiu que turistas de França e da Alemanha – dois países com altas taxas de infeção – pudessem entrar na Geórgia sem terem de fazer testes e também se permitiu a entrada de viajantes da Letónia. Enquanto o verão foi dando lugar ao outono, era só uma questão de tempo até que o vírus chegasse à capital Tbilisi, tornando-se uma pandemia – mais de um terço da população da Geórgia vive em Tbilisi, onde há transportes públicos sobrelotados e as pessoas vivem em maior proximidade, mantiveram-se os casamentos, as festas e a população acreditava que por causa dos sacrifícios que tinham sido feitos no início do ano ia ficar tudo bem. Infelizmente não é o caso.

A economia, que era demasiado dependente do turismo, está dizimada. No dia 31 de outubro houve eleições e os partidos da oposição dizem que houve fraude e que a eleição foi roubada. Seguiram-se grandes manifestações nas quais poucas pessoas usaram máscara ou mantiveram distâncias sociais. Agora o frio está a chegar em força e 2020 começa a parecer um somatório de oportunidades perdidas. Um amigo meu polaco, que tem uma adega e vinhas em vários locais, não conseguiu ser testado para entrar com segurança no país e por isso este ano não pôde fazer o seu próprio vinho, e como ele há centenas de pessoas em situações semelhantes. Por mais que o sol brilhe junto ao horizonte, espera-se um inverno frio uma vez que a maioria das pessoas não terá dinheiro para aquecimento. É provável que as taxas de criminalidade aumentem na medida em que as pessoas ficam desesperadas por dinheiro. Outras poderão dedicar-se ao abate ilegal de árvores, como era comum nos anos escuros da década de 90, depois da queda da URSS. De uma coisa podemos estar certos: as pessoas e o país irão sentir os efeitos dos erros de gestão desta pandemia a partir de meados do verão, durante muitos anos.

Gostaria de concluir este postal numa nota positiva, porque é mesmo importante manter a esperança. Se alguém consegue ultrapassar isto são os georgianos – eles passaram por pior no passado recente e saíram sempre por cima. Este país tem um potencial imenso por explorar no campo da agricultura, na indústria alimentar de valor acrescentado, na produção de vinho e, claro, no turismo. Este verão fizemos uma série de vídeos com produtores de vinho natural de todo o país. O que vimos deixou-nos muito impressionados. A qualidade e a consistência dos vinhos georgianos são melhores do que nunca e os vinicultores estão a receber mais encomendas para exportação e a construir instalações melhores para poder corresponder.

Como diriam os georgianos “Gaumarjos”, – Saúde!


*Adrian Scoffham é fotógrafo e profissional de marketing. Natural de Londres, mudou-se para a Geórgia há sete anos. É também responsável pela comunicação de uma start-up de aprendizagem de línguas. Desde março que não tem podido sair do país.