Julgamento de Rui Pinto arranca esta sexta-feira. Saiba o que está em causa
04-09-2020 - 06:46
 • Renascença com Lusa

O criador do Football Leaks está acusado de 90 crimes, entre os quais acesso indevido, violação de correspondência, acesso ilegítimo e sabotagem informática, e tentativa de extorsão.

O julgamento de Rui Pinto, criador do Football Leaks, começa esta sexta-feira. O alegado “hacker” está acusado 68 crimes de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e de sabotagem informática à SAD do Sporting e de extorsão, na forma tentada.

A acusação do Ministério Público (MP), para a qual remete o despacho de pronúncia, sustenta que, desde o início de 2015 até 16 de janeiro de 2019, Rui Pinto “muniu-se de conhecimentos técnicos e de equipamentos adequados que lhe permitiram aceder, de forma não autorizada, a sistemas informáticos e a caixas de correio eletrónico de terceiros”.

Em causa está, no fundo, o conceito de “whistleblower” (denunciante) e o equilíbrio entre o direito à reserva de pessoas e empresas e o alegado interesse público nas informações obtidas através do Football Leaks. Os crimes por que Rui Pinto vai responder – são 90 ao todo – visam entidades como o Sporting, o fundo de investimento Doyen Sports, a sociedade de advogados PLMJ, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e a Procuradoria-Geral da República (PGR).

Detalhes dos crimes por que Rui Pinto responde


O crime de tentativa de extorsão (de 500 mil a um milhão de euros) diz respeito à Doyen, com a contrapartida de Rui Pinto não revelar documentos deste fundo de investimento, com a intermediação de Aníbal Pinto, então advogado de Rui Pinto.

O alegado pirata informático terá acedido, em setembro de 2015, ao sistema informático deste fundo de investimento e obteve dezenas de documentos confidenciais, sobretudo contratos de jogadores e de clubes. Ainda segundo o MP, um mês depois, houve um encontro presencial, na estação de serviço da autoestrada A5, em Oeiras, entre Nélio Lucas, à data representante legal da Doyen Sports, e Aníbal Pinto, que serviu de intermediário.

Entre 6 de novembro de 2018 e 7 de janeiro de 2019, Rui Pinto terá acedido 307 vezes aos servidores da PGR e obtido documentos dos processos do roubo do armamento de Tancos, do BES e da Operação Marquês.

O MP diz, também, que Rui Pinto entrou, entre 20 de julho e 30 de setembro de 2015, nas caixas de correio eletrónico de 19 elementos do Conselho de Administração e do departamento de futebol (profissional e de formação) do Sporting. Entre os quais o então presidente do clube, Bruno de Carvalho, e o ex-treinador, Jorge Jesus, além de Otávio Machado e Augusto Inácio.

Quanto à FPF, a acusação refere que, entre as 04h31 e as 08h00 de 1 de março de 2018, Rui Pinto efetuou 48 acessos a servidores/computadores.

Sobre a sociedade de advogados PLMJ, a acusação diz que, após tomar conhecimento da equipa de advogados que iria defender o Benfica no processo “e-toupeira”, o arguido “decidiu aceder ao sistema informático e de correio eletrónico” desta sociedade e seus advogados.

Em que se resguarda a defesa de Rui Pinto?


A defesa do criador do Football Leaks encontra-se a cargo dos advogados William Bourdon (que já representou denunciantes como Edward Snowden ou Antoine Deltour), Francisco Teixeira da Mota e Luísa Teixeira da Mota. Invoca a inclusão do arguido sob a proteção de denunciantes, um regime sobre o qual o Parlamento Europeu aprovou uma diretiva em abril de 2019 e que o Estado português tem, ainda, de transpor para a legislação nacional.

Esta legislação, a primeira a nível europeu sobre a proteção dos denunciantes, aplica-se às pessoas que pretendam alertar para eventuais violações do direito da União Europeia em vários domínios. Nomeadamente, branqueamento de capitais, fraude fiscal, contratação pública, segurança dos produtos e dos transportes, proteção do ambiente, saúde pública, proteção dos consumidores e proteção dos dados pessoais.

Os representantes de Rui Pinto defendem que o interesse público das informações reveladas supera a gravidade dos alegados ilícitos cometidos pelo “hacker”. A sustentar a tese está a colaboração, até à detenção, com as autoridades judiciais de França, Bélgica e Países Baixos na condição de denunciante. Facto confirmado pelo Eurojust, a Unidade Europeia de Cooperação Judicial, com fornecimento de informações e documentos que tinha em sua posse.

Especialistas recordam "princípios fundamentais"


Especialistas em Direito ouvidos pela Renascença dizem que espírito da lei tem abertura para que o interesse público dos dados revelados atenue a pena, mas não prevê o perdão. As provas divulgadas poderão, até, não ser consideradas válidas.

“Na lei portuguesa, não há disposições específicas sobre a proteção dos denunciantes”, explica à Paulo Sá e Cunha, advogado. “Há determinados instrumentos de Direito Europeu que prevêem a criação de canais de denúncia, através dos quais as pessoas que trabalham numa determinada organização possam denunciar com determinadas garantias de anonimato e proibição de represálias”, elucida, em declarações à Renascença.

Para Paulo Sá e Cunha, o caso descrito na lei é bem distinto do de um pirata informático, que “é alguém que está de fora e que acede de forma ilegítima a um sistema informático para o qual não está autorizado a aceder”.

Neste caso, "há uma diferença muito apreciável”, realça o advogado, que vê riscos na possibilidade de se consagrar na lei uma proteção especial a quem comete um ato ilícito para obter provas.

Em entrevista à revista alemã "Der Spiegel", Rui Pinto defendeu que esse dado não deveria ser o mais importante no caso: “Não acho que deva importar se alguém que divulga documentos incriminatórios está dentro da empresa ou se esse material é divulgado por alguém de fora. No final, é sempre um denunciante [‘whistleblower’] a expor algo que, caso contrário, se manteria longe da sociedade: crimes, coisas erradas, má conduta.”

Também por isso, o suposto "hacker" considera que o argumento da nulidade das provas pelo facto de terem sido obtidas de forma ilegal não deveria importar. Para Paulo Sá e Cunha, esse argumento não pode ser aplicado aos olhos da lei.

“Não podemos tolerar que alguém que atua ilicitamente, praticando um crime, esteja numa posição que é mais favorável para a obtenção de prova do que aquela em que estão as próprias autoridades”, diz o jurista, que avança até a possibilidade de a prova obtida poder ser considerada imprestável: “Não é utilizável porque viola os princípios fundamentais do processo penal.”

Em mensagem escrita enviada à Renascença, a 8 de novembro de 2019, Rui Pinto assumiu aceitar “perfeitamente que, à luz do ordenamento jurídico, alguns dos [seus] atos sejam considerados ilegais”.

“Irei responder por isso. Mas não posso aceitar esta perseguição e esta postura violenta e vingativa por parte do Estado português. Encontro-me há sete meses preventivamente detido, seis dos quais em regime de isolamento, sem que tivesse tido qualquer interação com outros detidos. Não matei nem roubei. Face a tudo o que tem acontecido neste processo, tenho sérias dúvidas de que terei um julgamento justo. De qualquer forma, irei lutar com todas as minhas forças para fazer valer a minha posição. Sou apesar de tudo um denunciante, um 'whistleblower' que serviu o interesse público ao expor graves ilegalidades e atos de corrupção”, escreveu o alegado “hacker”.

Contudo, também em declarações à Renascença, Faria Costa, antigo provedor de Justiça, assinalou que a delação premiada “não é mais do que uma forma de corrupção ética”.

"É, indiscutivelmente, uma forma de fazer com que o Estado, que deve ser uma pessoa de bem, aceite formas enviesadas da procura e investigação criminal. São coisas muito sérias e não têm que ser baseadas em forma de corrupção ética”, afirmou o penalista.

Na lista de 45 testemunhas arroladas por Rui Pinto, figuram vários nomes sem ligação conhecida aos factos que constam no processo, mas que poderão relevar o interesse público das informações expostas. Destacam-se o denunciante norte-americano Edward Snowden, a ex-eurodeputada Ana Gomes, o diretor da Polícia Judiciária (PJ), Luís Neves, o treinador Jorge Jesus ou o jornalista e ativista angolano Rafael Marques.

Arranca o julgamento de Rui Pinto


Rui Pinto encontra-se em liberdade desde 7 de agosto, “devido à sua colaboração” com a PJ e o seu “sentido crítico”, de acordo com a justificação da juíza Margarida Alves, apesar da oposição do MP. Porém, por questões de segurança, encontra-se inserido no programa de proteção de testemunhas em local não revelado e sob proteção policial.

Detido na Hungria e entregue às autoridades nacionais com base num Mandado de Detenção Europeu, o arguido esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019, até 8 de abril de 2020.

A 17 de janeiro, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa pronunciou Rui Pinto por 90 crimes, em vez dos 147 que constavam da acusação do MP. Na leitura da decisão instrutória, a juíza Cláudia Pina defendeu que Rui Pinto “nunca poderia ser enquadrado na categoria de ‘whistleblower’”, pois teve uma “atuação diversa à de denunciante de boa fé” e agiu de “modo ilícito”.

O início do julgamento está agendado para as 09h30 desta sexta-feira, no Tribunal Central Criminal de Lisboa, no Campus da Justiça. Em média, terá três sessões por semana, durante os próximos meses.