O caso que começa a ser julgado esta terça-feira no Vaticano, conhecido como Vatileaks II, põe em causa a seriedade do trabalho de todos os funcionários do Vaticano, pelo que estes estão a acompanhar o processo com particular interesse. É a opinião de Saturino Gomes, padre que, em 2014, foi nomeado para trabalhar na Rota Romana, um dos tribunais canónicos da Santa Sé.
O ambiente em Roma, por estes dias, é de expectativa, diz o padre português a trabalhar na capital italiana: “O ambiente em geral é, não diria de angústia, mas de expectativa e de serenidade e de confiança na justiça da Igreja e do Estado do Vaticano.”
“Há também uma preocupação, com certeza, por parte daqueles que trabalham na Cúria Romana no Estado do Vaticano. Estes problemas põem em causa também a confiança e a seriedade do trabalho que é realizado pelas pessoas. O facto de isto ter sido causado por este grupo de pessoas não quer dizer que os outros funcionários estejam ao mesmo nível ou devam ser também consideradas por tabela", acrescenta.
Os procuradores do Vaticano formularam acusação contra três ex-funcionários da Santa Sé, entre os quais um sacerdote, e o seu secretário pessoal, e uma especialista em Relações Públicas que desempenharam funções num órgão encarregado de ajudar a reformar os departamentos financeiros do Vaticano. Os outros dois acusados são os jornalistas Gianluigi Nuzzi e Emiliano Fittipaldi.
Entre os funcionários do Vaticano, existe também muita incompreensão pelo que terá motivado, pelo menos, três dos arguidos a roubar e fornecer aos jornalistas que, depois, os usaram para escrever livros com revelações sobre o Vaticano. “Lamentam que isto tenha acontecido quando as pessoas tinham confiança recebida pelo Papa para trabalharem ao serviço da Igreja e depois acontecem estes crimes. É uma falta de confiança que leva a preocupar e a interrogar-se de facto, sobre qual é a motivação das pessoas para agirem deste modo.”
Extradição?
Os cinco acusados vão ser julgados num tribunal civil do Vaticano, ao abrigo de um código que é diferente do canónico. “O Estado da cidade do Vaticano tem as suas leis próprias. Com certeza que a fonte primária são sempre as normas canónicas. Depois, há uma lei fundamental do Estado da cidade do Vaticano, há uma lei do Governo do Estado da Cidade do Vaticano. Estas duas foram promulgadas no pontificado de João Paulo II. Depois, há outras leis de carácter penal, administrativo, de aplicação da justiça e de vários estádios de funcionamento do Estado da Cidade do Vaticano”, explica o padre Saturino, acrescentando que se trata do mesmo tribunal que julgou um arcebispo polaco que foi acusado, recentemente, de pedofilia.
“Este tribunal também tem as suas leis, tem o código civil, penal, muitas das normas também servem-se do Estado italiano, outras do direito canónico, mas tem leis próprias”, explica. A relação com o Estado italiano é compreensível, uma vez que o Vaticano é um enclave no território italiano, mas neste processo em particular há uma diferença entre os códigos civis dos dois estados que é da maior importância, uma vez que a lei italiana garante e protege a confidencialidade das fontes jornalísticas, mas a lei do Vaticano não.
“Há essa lei do Estado italiano, mas, por outro lado, a própria lei do Estado da Cidade do Vaticano é bem clara quanto a alguns crimes que sejam cometidos, sejam eles de que ordem forem. Dizem, por exemplo, que quem procurar legitimamente revelar notícias ou documentos cuja divulgação seja proibida é punido também com a prisão”, com agravantes para “conluios ou associações para maquinar contra a Igreja ou o Estado da Cidade do Vaticano e que se reúnem, como é o caso dessas cinco pessoas, para divulgar documentos secretos.”
Este choque de legislações poderá vir a causar alguma tensão no futuro, sobretudo no caso de os dois jornalistas serem condenados, uma vez que nem Nuzzi, nem Fittipaldi se dispuseram a colaborar com o Vaticano no processo. Nesse caso, o Vaticano poderá pedir a extradição dos condenados, para cumprirem pena no Vaticano, e caberá ao Estado italiano decidir se cumpre com o pedido ou não.
Mais importante, diz o padre Saturino Gomes, é que seja feita justiça. “Vai ser um processo de que o Papa tem conhecimento, com certeza, e que vai por diante para se apurarem as responsabilidades e a verdade de tudo isto, porque não se pode admitir, em qualquer organização, nomeadamente aqui na Igreja, no Estado do Vaticano. Se as pessoas têm responsabilidades sérias não podem cometer estes delitos.”