Um Papa com um discurso para dentro e outro para fora, complementares
06-03-2021 - 16:14
 • Filipe d'Avillez

Francisco já terminou o segundo dia do seu programa no Iraque. Este sábado ficou claro que viajou para o país com duas mensagens, uma para o país em geral e outra para os cristãos. Essas mensagens parecem contraditórias, mas só para quem não as olha pela perspetiva da Cruz.

Este segundo dia do Papa no Iraque foi marcado por três momentos muito distintos, mas todos com um traço comum: o apelo pela igualdade de direitos para os cristãos e outras minorias religiosas.

E tal como aconteceu no seu primeiro dia no Iraque, na sexta, Francisco teve um discurso diferente para fora e para dentro. Diferente, mas complementar.

Logo cedo de manhã Francisco foi até Najaf para se encontrar com o líder supremo dos muçulmanos xiitas, o ayatollah Ali al-Sistani. Foi um momento histórico, pela sacralidade de Najaf para os xiitas – só Meca e Medina ultrapassam – e pela importância de Sistani.

Na sexta-feira o Papa pediu aos políticos que garantam direitos para os cristãos, mas a diplomacia do Vaticano sabe que esse pedido é em vão se as forças religiosas da maior confissão do país, os xiitas, não lhe derem apoio e força. No comunicado final, depois do encontro privado, o ayatollah fez precisamente isso e a importância da pequena frase “os cristãos devem viver e gozar de plenos direitos ao abrigo da constituição”, carregada da sua autoridade, não pode ser menosprezada.

De seguida Francisco presidiu a uma cerimónia inter-religiosa em Ur, terra de Abraão. Mais do que o seu discurso, o próprio evento serviu para testemunhar a importância da coexistência num país onde os cristãos são apenas uma de várias minorias religiosas, e nem sequer a mais duramente perseguida. E o encontro testemunhou isso não só pelos presentes, muçulmanos xiitas e sunitas, cristãos e mandeus, entre outros, mas pela notória ausência de judeus, os primogénitos de Abraão, que não existem mais no Iraque precisamente por causa da perseguição a que foram sujeitos ao longo das últimas décadas.

À tarde, novo momento histórico com Francisco a tornar-se o primeiro Papa a celebrar missa o Iraque e o primeiro Papa a celebrar segundo o rito caldeu. Aí vimos, tal como ontem no encontro na catedral Siro-Católica de Nossa Senhora da Salvação, um discurso mais virado para dentro. Se na sexta-feira Francisco referiu a importância de o sangue derramado pelos mártires ser semente de paz e reconciliação e não de ressentimento e vingança, este sábado sublinhou o facto de ser precisamente na pequenez, na fraqueza e na mansidão que os cristãos do Iraque encontrarão as bem-aventuranças prometidas por Cristo.

Não há contradição nestas abordagens. Os cristãos são, de facto, cidadãos de segunda no Iraque, tanto na prática como diante da lei e essa é uma injustiça que deve ser retificada, mas é igualmente importante que os próprios cristãos compreendam que o caminho da Cruz, de perdão e mansidão, não são incompatíveis com a justiça, sendo antes o melhor caminho para lá chegar.

“Como reajo eu às situações funestas? À vista das adversidades, apresentam-se sempre duas tentações. A primeira é a fuga: fugir, virar as costas, desinteressar-se. A segunda é reagir, como irritados, com a força. Assim aconteceu com os discípulos no Getsémani: no alvoroço geral, vários fugiram e Pedro puxou da espada. Mas nem a fuga nem a espada resolveram coisa alguma. Ao contrário, Jesus mudou a história. Como? Com a força humilde do amor, com o seu paciente testemunho. O mesmo somos nós chamados a fazer; assim Deus realiza as suas promessas.”

O programa do Papa para este sábado terminou com esta missa, mas continua no domingo com uma visita a Erbil, capital do Curdistão iraquiano, a Mossul e a Qaraqosh, a maior cidade cristã do Iraque.

Na segunda-feira Francisco volta para Roma.