Abusos. Afinal, o que significa “tolerância zero”?
22-02-2019 - 14:59
 • Aura Miguel , Filipe d'Avillez

O conceito nasceu nos Estados Unidos, mas nem sempre significa a expulsão dos abusadores do estado clerical, explica o cardeal O'Malley. O padre Lombardi recorda que a defesa dos menores vai muito para além da punição.

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Um dos termos mais usados quando se fala de abusos sexuais na Igreja é a abordagem da “tolerância zero” em relação aos abusadores. Mas nem sempre o sentido que lhe é dado é claro.

A questão foi amplamente abordada esta sexta-feira, durante a conferência de imprensa do segundo dia da cimeira sobre abusos sexuais, que está a decorrer no Vaticano. Na sala estavam vários participantes no encontro, incluindo o cardeal Seàn O’Malley e o arcebispo Charles Scicluna, que são reconhecidos como dois dos maiores especialistas da Igreja neste campo.

Respondendo a um dos jornalistas, o cardeal O’Malley disse que nos Estados Unidos a expressão tem um sentido claro. “Quando estávamos a discutir a Carta [de Dallas] o compromisso foi de que ninguém poderia continuar no ministério depois de ter ferido uma criança”.

Mas isto, explicou o cardeal e arcebispo de Boston, não é o mesmo que dizer que o culpado será expulso do sacerdócio. “Em casos em que a pessoa era já velha, ou doente, poderia ser apenas obrigada a viver uma vida de oração e penitência”, disse O’Malley, falando de uma restrição que implica também o isolamento social do culpado e a sua remoção de qualquer atividade eclesial pública.

“E algumas comunidades religiosas acharam que o melhor era mesmo manter a pessoa na comunidade, para poder mantê-la debaixo de olho, garantindo assim a segurança das crianças. Por isso o efeito final é o mesmo, em todos os casos são removidos do ministério ativo”, esclarece o cardeal, acrescentando que sabe que há outros países em que as normas não o obrigam, mas que pessoalmente defende que esta deve ser uma abordagem universal.

De seguida falou também o arcebispo Scicluna, que é especialista em direito canónico, que fez questão de esclarecer que a noção de tolerância zero não é um conceito jurídico. “Não podemos permitir a ninguém que magoe os mais novos. Mas este é um princípio que nada tem a ver com penas, é meramente prudencial.”

“Se a pessoa é remitida ao estado laical, ou remetida a uma vida de oração e penitência, em todo o caso a abordagem prudencial não é uma abordagem penal. Não se removem as pessoas do ministério para as punir, mas para proteger o rebanho. Isto é que é fundamental.”

Já o padre Federico Lombardi, que é um dos organizadores da cimeira, disse que pessoalmente não gosta de usar o termo “tolerância zero”, porque o acha limitador.

“Porque é que tenho dificuldades com isto? Porque se refere a um aspeto muito limitado do problema que enfrentamos. Toda a dimensão do cuidado pastoral para as vítimas, acompanhamento, seleção de membros do clero, prevenção nas paróquias e nas nossas atividades... A definição da tolerância zero não abrange isto. Fala apenas de uma ação punitiva contra o criminoso”, disse.

“É uma parte fundamental, mas é só uma parte da área da proteção dos menores, que a mim me parece ser muito mais alargada.”

Denúncia às autoridades civis?

Outro tema que divide as diferentes conferências episcopais é a obrigatoriedade, ou não, de denunciar todos os casos suspeitos às autoridades civis.

As normas internas dos países de tradição anglófona, como os Estados Unidos, Canadá e Inglaterra e País de Gales, obrigam os bispos a informar imediatamente as forças policiais quando recebem uma queixa. Em conjunto com estas a queixa é depois investigada para averiguar se é credível ou não.

em Portugal as diretrizes da conferência episcopal apenas dizem que a Igreja deve encorajar as vítimas ou o denunciante a ir ter com a polícia, colaborando posteriormente com ela sempre que for necessário.

Para o cardeal O’Malley, é uma questão de transparência. “Nos Estados Unidos comprometemo-nos a relatar sempre. Acreditamos que existe uma obrigação moral de partilhar esta informação com as autoridades civis, para a proteção das crianças. Acredito que a terrível crise que temos enfrentado nos Estados unidos deve-se ao facto de, durante tanto tempo, estes crimes não terem sido divulgados. A denúncia é, para mim, uma parte importante no caminho em frente, para a proteção das crianças. “

Esta é, diz o cardeal, a grande missão da Igreja nos tempos atuais. “Na minha opinião não há nada mais urgente para a Igreja do que poder criar mecanismos para abordar a parte mais importante da nossa missão nesta época da história, proteger as crianças e reparar os crimes, o sofrimento e as traições infligidas a tantas crianças e adultos vulneráveis.”

A cimeira sobre os abusos sexuais decorre em Roma até domingo e conta com a presença de 190 participantes. O Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, está presente em representação da Conferência Episcopal Portuguesa.