Editar os genes: o que é medicina e o que é eugenia?
26-02-2021 - 06:23

Temos o direito de “reparar” ou “corrigir” todas as pessoas mesmo antes delas nascerem? Porquê? E se descobrimos o gene que faz com que determinadas pessoas sejam mais gordas? Exterminamos ou corrigimos os gordos ainda antes de eles terem consciência? E se descobrirmos o gene do autismo ou da surdez? Onde é que acaba a medicina (correção de problemas) e começa a eugenia (a busca de uma raça perfeita)?

Na série “Years and Years”, uma das personagens principais tem uma deficiência grave: espinha bífida. Estamos aqui num futuro próximo, há um avanço tecnológico notável e verosímil; na medicina, a espinha bífida deixou de ser um problema, porque essa deficiência é corrigida logo no útero. Portanto, esta personagem, uma rapariga em cadeira de rodas, é uma das últimas pessoas do mundo com espinha bífida. E, às tantas, ela pergunta: corrigir-me? Mas porquê? Eu gosto de mim assim, porque é que me iriam corrigir sem pedir a minha autorização ainda na barriga da minha mãe?

A pergunta é mais do que legítima. O conhecimento dos genes dar-nos-á a capacidade de ver e corrigir ainda no útero uma série de doenças e condições, da surdez à espinha bífida, do autismo à leucemia, etc., etc., etc. Há aqui um potencial ilimitado para a medicina, tal como há um potencial ilimitado para a barbárie eugenista.

Temos o direito de “reparar” ou “corrigir” todas as pessoas mesmo antes delas nascerem? Porquê? E se descobrimos o gene que faz com que determinadas pessoas sejam mais gordas? Exterminamos ou corrigimos os gordos ainda antes de eles terem consciência? E se descobrirmos o gene do autismo ou da surdez? Onde é que acaba a medicina (correção de problemas) e começa a eugenia (a busca de uma raça perfeita)?

E como é que sabemos se não estamos apenas a corrigir uma possibilidade e não uma evidência? Ou seja, podemos descobrir que a bebé x tem uma alta probabilidade de desenvolvimento do cancro da mama. Mas isso é só uma probabilidade.

A genética começa a parecer um pouco como o “Relatório Minoritário”. Lembram-se? No livro/filme, há uma brigada especial que prende o criminoso antes de este perpetrar o crime. A nossa obsessão com a antecipação da doença é uma espécie de “Relatório Minoritário” médico que se torna irracional na busca de tanta racionalidade e de tanto controlo. Como se tem visto nesta pandemia, a obsessão com o controlo absoluto do homem sobre a natureza torna a sociedade irracional.

De que serve sabermos que temos possibilidades de desenvolver a doença x ou y se não existem curas para essas doenças? Esse conhecimento serve para quê? É um conhecimento que alimenta a irracionalidade, mas aparentemente há mercado e procura deste quizz genético. As pessoas querem saber, querem controlar. Mas saber que se pode desenvolver Parkinson não garante qualquer tipo de controlo; pelo contrário, tem o potencial para descontrolar a pessoa.

Ou será que estamos já na antecâmara da próxima fase da defesa da eutanásia?

Porque é que as pessoas querem saber se podem desenvolver doenças para as quais não há cura? Para agendar a sua morte assim que os sintomas aparecerem. Num futuro próximo, este será o argumento libertário, a soberania absoluta do “eu” que já está a exigir a morte assistida enquanto direito social garantido pelo Estado ou como produto adquirível no mercado.

Depois, como salientou Andrew Solomon, haverá o argumento utilitário: certas pessoas/famílias – dir-nos-ão os profetas deste "progresso" – são um fardo tremendo para a sociedade e, nesse sentido, temos de saber o potencial genético de toda a gente para se determinar se x e y podem ter filhos.

Exagero? Porque é que há uma pressão sobre pais com doenças incuráveis para não terem filhos ou fazerem uma seleção in vitro da carga genética “boa” e livre da doença? E os bebés com trissomia 21 não estão já a ser destruídos debaixo deste pressuposto de que seriam um fardo para a família e para a sociedade? Depois do extermínio dos bebés com trissomia, quais serão as vítimas deste pensamento utilitário que acompanha o desenvolvimento da genética?