Sobre a greve dos médicos: é possível justificar eticamente?
05-07-2019 - 19:46

Qualquer campanha dos profissionais de saúde no sentido de melhorar as condições difíceis do SNS poderá quase ser considerada, nas actuais condições do SNS, uma obrigação moral.

Nestes últimos tempos temos sido confrontados com diversas greves dos profissionais de saúde. De facto, é fácil perceber, pelo impacto negativo que representa quer na qualidade da prestação de cuidados de saúde quer na relação de confiança que se estabelece entre quem cuida e quem é cuidado, que a necessidade de olhar para o assunto de uma perspetiva ética é incontornável.

No fundo na greve dos médicos e de outros profissionais de saúde assistimos ao conflito entre diferentes perspetivas com natureza ética diversa.

O primeiro cenário (cenário 1) pode ser descrito a partir do conflito de dois deveres deontológicos: (1) por um lado o dever deontológico dos médicos e dos outros profissionais de saúde em prestar o cuidado adequado aos seus doentes actuais e, por outro, (2) a necessidade de defender serviços de saúde adequados às necessidades de futuros doentes e da sociedade em geral.

No entanto, não podemos deixar de sublinhar outro importante conflito (cenário 2): (1) o de reivindicar o seu melhor interesse (através de salários mais adequados e condições de trabalho mais dignas) e, (2) o de defender o melhor interesse dos doentes que pela greve têm as suas consultas/cirurgias adiadas.

Evidentemente, do ponto de vista ético estes conflitos entre o bem individual e o bem comum são de diferente natureza e, realmente a eticidade da revindicação é diferente de acordo com as motivações para a mesma. Numa lógica de conflito de interesse é importante referir que o primeiro interesse de qualquer profissional de saúde é o maior bem do seu doente.

Assim no cenário 1 podemos inferir que a justificação poderá assentar no pressuposto de que se atenta contra o melhor bem de um doente actual com a justificação que a minha acção permite, se bem-sucedida, garantir melhor interesse de todos os futuros doentes. Apesar de esta lógica não ser comum na ética clínica, em que a garantia do melhor interesse de cada doente é sempre o pressuposto ético fundamental na área da saúde pública é várias vezes usado. Por exemplo nas doenças de declaração obrigatória existe, por certo, um conflito entre o bem do individuo (a sua vontade e a sua privacidade) e o bem comum (proteger a população).

Evidentemente, que esta situação só poderá ser comparável se estiver garantido que as consequências da greve não resultaram em nenhuma situação de ameaça séria à vida ou à possibilidade de recuperação de qualquer doente atingido pela mesma. Existindo qualquer situação desta natureza como é evidente, não poderá existir justificação ética para a mesma. Deste modo, somente com resultados robustos sobre as consequências da mesma estaríamos em condições de avaliar se, sim ou não, a mesma poderá ser considerada ética.

Por outro lado, o cenário 2 significa, claramente, uma situação eticamente ilegítima. Qualquer médico para ser “médico com verdade e de verdade” jura que “A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação” assim, evidentemente se a motivação da greve foi a revindicação de uma melhoria da sua situação pessoal será difícil justifica-la de uma perspetiva ética e deontológica.

Qualquer campanha dos profissionais de saúde no sentido de melhorar as condições difíceis do SNS poderá quase ser considerada, nas actuais condições do SNS, uma obrigação moral. No entanto, sem evidência que assegure que nenhum doente sofreu um acréscimo de riscos ou transtornos em consequência desta situação é difícil encontrar argumentos que nos permitam justificar eticamente uma greve de profissionais de saúde.

Ana Sofia Carvalho, Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa