A soberania do bem
29-11-2019 - 06:30

Se o cínico peca quando diz que não há moral, o moralista peca quando dá a entender que as escolhas morais são sempre fáceis e óbvias. Não são.

O jesuíta José Maria Brito cunhou uma expressão sublime sobre a fé. A nossa crença, diz Brito, não deve ser um tijolo para atirar, mas sim um tesouro para partilhar. O Paulo Duarte, também jesuíta, é um dos grandes guardiões deste tesouro em Portugal. Tesouro, esse, que nunca é transformado em lingotes, quais tijolos dourados para atirar aos outros em forma de julgamento e punição. E isto não quer dizer que o Paulo é relativista. Não, o Paulo não é um saduceu. Quer dizer, isso sim, que o Paulo é moral, e não moralista. Qual é a diferença? O moralista usa a fé para vigiar e punir os outros, sem nunca passar pelo esforço fundamental do cristão: compreender a preposição do outro, tentar compreender as acções dos outros, mesmo quando essas acções são terríveis.

Dou dois exemplos desta atitude, um histórico, outro microscópico. Primeiro: Hannah Arendt dizia, e bem, que era preciso compreender a emergência do nazismo, deixando bem claro que compreender não é desculpar; era preciso compreender o nazismo, porque a tarefa fundamental era impedir o regresso de algo parecido. Segundo: a rapariga que há dias abandonou um bebé no lixo. É óbvio que esta mulher tem de ser punida, cometeu um crime hediondo. Só que esta punição legal é somente o princípio da conversa. A seguir vem o fundamental: tentar compreender porque é que ela fez aquilo, tentar sentir o que ela estava a sentir (não tem país, não tem família, não tem casa, vive na rua, é abusada, tem fome, tem frio) para fazermos a pergunta chave: qual é o livre arbítrio que sobra a uma pessoa a viver assim? Ela não tomou aquela decisão no nosso conforto. Este esforço de compreensão é fundamental a três níveis. Primeiro, é fundamental para nós, pois obriga-nos a um esforço moral e até literário de expansão da nossa sensibilidade moral. Nós temos de imaginar os dilemas morais desta pessoa, dilemas que nunca lhe ofereceram boas alternativas, ela só tinha diferentes opções de mal à sua disposição. Segundo, é fundamental para ela, porque nós, como cristãos, temos de lutar pela redenção desta pessoa. Terceiro, é fundamental para a sociedade, porque o foco principal é criamos as condições para que este crime não se repita. Ora, estes três passos resumem bem o magistério do Paulo Duarte: ser moral sem ser moralista; ser duro com o pecado sem perder a empatia com o pecador.

Mas como é que mantemos o rigor contra o pecado ao mesmo tempo que mantemos a empatia com o pecador? Ao ler este livro do Paulo, lembrei-me muito da filosofia ou psicologia de Iris Murdoch. Eu não sou fã de Murdoch, já deixei dois livros a meio, mas venero os pressupostos morais da sua visão. Pressupostos, esses, que foram compilados num livro de 1970 intitulado "A Soberania do Bem”.

Ao longo das últimas décadas, o cinismo pós-moderno impôs duas visões parecidas: ou não há moral, somos bolas de bilhas a chocar umas nas noutras, ou a moral é apenas o afecto de cada um, cada um escolhe a sua moral. Ou não há bem, ou o bem é apenas uma mera subjectividade de cada um. Seguindo ou não o Evangelho (ainda não percebi, embora isso seja de somenos importância), Iris Murdoch recusa em absoluto esta predisposição amoral. A moral existe, em primeiro lugar, e é exterior ao ser humano, em segundo lugar. O bem é real e não subjectivo. O ser humano não cria moral, descobre a moral que já existe na estrutura do mundo. A bondade, a ternura, a crueldade ou a futilidade não são pontos de vista, são realidades palpáveis. O Paulo faz-me lembrar Murdoch por isto. Ele percorre o mundo moral como o botânico percorre o mundo natural, isolando as flores e as ervas daninhas, cuidando das primeiras e mondando as segundas.

Os ecos de Murdoch continuam noutro ponto do trabalho do Paulo. Quando falamos de moral, não podemos ceder à abstracção fácil. É esse o pecado do moralismo. A moralidade choca com a realidade física e desse choque nascem os dilemas morais que nos definem enquanto seres humanos. Se o cínico peca quando diz que não há moral, o moralista peca quando dá a entender que as escolhas morais são sempre fáceis e óbvias. Não são. Ser decente é uma carga de trabalhos. Os textos do Paulo partem desta premissa, partem de dilemas reais de pessoas concretas, pessoas que não sabem muito bem o que fazer, porque o fardo da escolha é tremendo. Por outras palavras, não serve de nada defendermos um Bem abstrato se formos insensíveis às pessoas concretas que nos rodeiam. "Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa” (1 Cor 13, 1).

PS: texto da apresentação do livro "Rezar a Vida", 27 novembro, Lisboa.