D. Jorge Ortiga. “Depois do 25 de Abril, a minha ligação aos jovens do MRPP foi de muita proximidade”
12-02-2022 - 11:45
 • Ana Catarina André

Acompanhou o pontificado de sete Papas, esteve à frente da Arquidiocese de Braga durante 22 anos e foi presidente da Conferência Episcopal. D. Jorge Ortiga era até agora o bispo há mais tempo em funções na Igreja em Portugal.

Aos 77 anos, D. Jorge Ortiga despede-se da arquidiocese de Braga, depois de mais de duas décadas como arcebispo. Em entrevista à Renascença, recorda a infância, a vida de estudante em Roma e os tempos conturbados do 25 de Abril em que era amigo de alguns jovens do MRPP. Conta como foi presidir à Conferência Episcopal durante seis anos e considera que este órgão poderia “ser mais acutilante em alguns documentos a trazer para a praça pública”. Nos próximos anos, espera ficar em Braga e receber políticos e artistas que queiram conversar com ele. “Não sou de estar parado”, sublinha.

Cresceu na freguesia de Brufe, no concelho de Vila Nova de Famalicão. Que memórias tem desses primeiros anos de vida?

Tinha uma vida muito normal. Sou filho de operário e agricultor e, portanto, tenho um conhecimento mínimo daquilo que é a agricultura, por um lado, porque era aí que passava a maior parte do tempo, mas, ao mesmo tempo, estava um pouco imbuído da problemática do mundo operário, por ouvir falar. Depois, era um jovem como todos os outros a frequentar uma escola, com amigos.

Num Portugal muito diferente...

Muito mais pobre. Sou de uma família remediada onde nada me faltou, mas tinha colegas com muitas dificuldades.

Contou, várias vezes, que sempre teve o desejo de ser padre. Como é que esse apelo se ia manifestando?

Não sei como nem porquê, desde pequeno – talvez pela educação que tive, pela proximidade à Igreja da parte dos meus pais, pelo cumprimento escrupuloso das regras – nunca tive grandes dificuldades em entender o que é que poderia ser a minha vida. Durante o tempo de seminário, fui-me interrogando, tendo as minhas dúvidas, respondendo, esclarecendo com oração, refletindo com a ajuda do diretor espiritual e dos padres que nos acompanhavam e fui avançando naturalmente.

Em pequeno, costumava imitar o padre.

Sim, são brincadeiras que às vezes se faziam. As festas eram a única coisa que havia nas freguesias. Não havia mais nada. Ninguém saia. Não havia transportes públicos. Eram as crianças, ali do lugar, que se encontravam e que brincavam um pouco a tudo. Um dos assuntos que, com frequência, dava para a brincadeira era a festa: quem levava o andor, quem era o fogueteiro, quem era isto, aquilo.... Eu normalmente era o padre.

Foi para o seminário com 11 anos. Como é que foi essa mudança?

Muito fácil. Esperava ansiosamente o dia 5 de outubro de 1955 para entrar no seminário. Era um desejo grande, se bem que, depois da família ter ido embora, senti uma certa tristeza, mas depois, com os outros colegas, tudo se foi ultrapassando. A vida do seminário era uma vida com horas para tudo: para a oração, para dormir, para as refeições, para as aulas, recreios.

Nas férias, quando ajudava os seus pais no campo levava, muitas vezes, um livro debaixo do braço. Esta imagem espelha de certa maneira quem é?

Sempre gostei da leitura e do estudo – não vale a pena estar aqui a dizer que era bom aluno. Havia alturas em que tinha tempo livre, pegava num livro e sentava-me não muito longe de casa a ler. Noutras ocasiões, ia para o campo e sabia que o trabalho que ia fazer, permitia a leitura em simultâneo – portanto estava trabalhando e lendo. Recordo-me de um trabalho que, de trabalho não é quase nada, mas que era muito importante. Chamávamos-lhe ‘olhar pelo motor’. O que é que isto quer dizer? As regas funcionavam a motor, mas era necessário desligá-lo imediatamente, quando o poço ficasse sem água, para que não ficasse a puxar em vão e pudesse queimar. Era necessário estar ali, mas sabia que havia ali uns vinte minutos, meia hora, em que podia dar uns passos, visitar um amigo ou então ler.

Eram sobretudo livros espirituais e teológicos?

Outras coisas também, se bem que, naquele tempo, e lamento que tenha sido assim, não fomos muito levados para a literatura clássica. Não havia um convite a ler Camilo [Castelo Branco], Eça [de Queiróz], ou coisa parecida. Eram mais livros de índole espiritual, muitas biografias que se tornavam motivadoras para a própria vocação. Só furtivamente pegávamos noutras coisas.

O Concílio Vaticano II aconteceu na época em que estava no Seminário Maior. Revelou que o movimento dos Focolares o ajudou a perceber a novidade que representava. Como?

São duas coisas diferentes e complementares. O Concílio terminou em 1965 e eu ordenei-me em 1967, mas o meu estudo de teologia, os livros, os compêndios eram os mesmos de sempre. Os professores ensinavam na forma pré-conciliar e muitos não tiveram a preocupação de se irem aggiornando. Apenas um tinha chegado de Roma e trouxe alguma novidade. Tive a sorte de fazer parte da revista Cenáculo. Tínhamos uma permuta com o jornal francês La Croix que descrevia as intervenções dos padres conciliares. Fui lendo alguma coisa, conhecendo e sabendo que algo estava a acontecer.

Ia ficando entusiasmado?

Sim, sim. Essa revista foi fundamental. A minha teologia foi pré-conciliar. Como digo, houve apenas um professor e, como costumo dizer, o primeiro a levar mais do que um livro para as aulas. De resto, havia um compêndio único, com aquilo que era preciso ler. Para além da revista Cenáculo e do jornal La Croix, começaram a surgir alguns livros que nos traziam uma visão um pouco diferente.

Foi ordenado a 9 de julho de 1967. O que recorda desse dia?

Era um dia esperado por todos, por acabarmos o curso, por iniciarmos uma vida nova, mas também visto com alguma apreensão e alegria. O que é que quero dizer com isto? Naquele tempo, a Diocese de Braga tinha também a Diocese de Viana do Castelo e era constituída por oitocentas e tal paróquias, paróquias sobretudo do interior, quase todas muito pequenas e com necessidades para uma vida com o mínimo de dignidade.

É por isso que fala em apreensão?

Havia muitas residências paroquiais que não tinham luz elétrica, nem na residência, nem na Igreja. Não havia estradas. Para chegar à igreja ou à residência era preciso ir a pé ou com carros de bois.

Eu nasci em Famalicão, não conhecia isso. Estava habituado à estrada. No último ano de teologia, isso inquietava-nos. Também nos alegrava, porque sabíamos que íamos encontrar gente muito boa, que nos acarinhava, que fazia tudo para nos estimar. Era maravilhoso o amor das pessoas ao pároco.

O que é certo é que não era fácil. Quase todos os padres tinham uma só paróquia, mas outros teriam duas – tinham de ir a pé de um lado para o outro. No verão, era agradável. No Inverno, havia chuva, neve. Alguns dos meus colegas tiveram essa experiência. Era uma alegria ser padre e trabalhar pelo Reino de Deus. Humanamente falando, não havia motivo nenhum que nos levasse efetivamente a fazer um curso de 12 anos para nos metermos, depois, num buraco de umas freguesias perdidas no meio da serra, no meio da neve, com pessoas a maior parte delas analfabetas.

O encontro entre padres seria difícil.

Era muito complicado. Havia sacerdotes que andavam a pé horas para se encontrarem, para trabalharem, para se ajudarem nas confissões. Numa freguesia de Viana do Castelo, dizia-se que quando havia um funeral, as pessoas demoravam duas a três horas até à Igreja. Normalmente, paravam a meio da viagem e, em cima do caixão, colocavam uma merenda. Comiam pão, chouriço e bebiam vinho. Se era verdade ... são histórias que contávamos uns aos outros.

A sua missa nova foi a primeira na diocese com concelebração, um sinal dos tempos de renovação do Concílio. O que o levou a fazer esse pedido ao arcebispo de então, D. Francisco Maria da Silva?

Iam lendo o La Croix e um ou outro livro e verificando que o Concílio Vaticano II permitia a concelebração. Estávamos habituados a ter a missa só com um padre, com um acólito, um diácono e subdiácono. Os outros padres assistiam. Por que razão é que não havíamos de participar todos na Eucaristia? Nunca se tinha feito. Não foi vaidade, nem vontade de mostrar ser diferente. Foi pura e simplesmente poder dizer que era possível e que devíamos enveredar por um caminho novo que estava a ser permitido.

Sentiu mais resistência ao Concílio por parte do Clero ou dos leigos?

É difícil responder, mas penso que mais da parte do clero. O povo de Deus ofereceu alguma resistência à mudança, mas era mais ignorância, digamos. Ao passo que da parte dos sacerdotes houve alguma oposição e oposição um pouco mais consistente em relação ao uso do latim, a celebrar de modo diferente, e a outras mudanças que foi necessário fazer. Em todas as dioceses, havia grupos de padres mais tradicionalistas. Nem sempre as reuniões, as chamadas palestras, eram pacíficas. Mas o tempo desfez tudo isso e o caminho percorreu-se.

Era claro para si que esse era o caminho?

Não tinha dúvida nenhuma e tinha pena que estivéssemos a perder tempo nessas questões. A Igreja tinha que se reformar.

O Concílio ainda está por concretizar?

O Concílio Vaticano II ainda não foi devidamente assimilado e ainda não trouxe à Igreja aquele rosto de uma Igreja povo de Deus, essencialmente como ela é apresentada na constituição Lumen Gentium, e como deveria ser com todas as consequências: uma Igreja empenhada nas questões do mundo, na ligação com os leigos, com a comunicação social, com tantos problemas que existem. A Igreja tem, ainda, muito que percorrer e ainda há sacerdotes e leigos que gostariam mais de um catolicismo de eucaristias fechadas na Igreja, de regresso ao latim e de tantas outras coisas. Mas não queria falar disso, porque não gosto. Prefiro olhar para o positivo, para aquilo que podemos fazer.

Quando foi para Itália em 1968 estudar História da Igreja, como era a vida em Roma?

Não era bem a matéria que gostava de estudar. A minha vida é mais orientada para o concreto, e já naquela altura, não sei como, nem porquê, a minha opção era a sociologia. Depois, o arcebispo tinha-me dito que sim e, depois à última hora, disse-me que passaria do futuro para o passado. Houve ali dois ou três dias em que foi preciso fazer um exercício de obediência. Ao fim e ao cabo, tenho de reconhecer que foi bom. Aprendi imenso a estudar História da Igreja, a andar pelos arquivos do Vaticano. O nosso tempo era passado entre o colégio e a faculdade. Um dos aspetos interessantes foi a experiência de universalidade: ter professores de diferentes línguas e com mentalidades diferentes, mas sobretudo os colegas com quem podíamos conversar.

Em Roma conhece melhor os Focolares.

Uma das experiências concretas dos Focolares é o que se chama, ainda hoje, a escola sacerdotal. Tinha professores universitários para a atualização de algumas disciplinas, mas era, sobretudo, uma escola de vida. Isto foi no terceiro ano. Todas as quintas-feiras deixava o colégio e ia até essa escola para poder conviver, estar, conversar. Uma das coisas que me dá muita alegria hoje é que posso sair de Portugal, ir a qualquer parte do mundo e bater a muitas portas. Sei que há muitas que se abrem. Efetivamente senti e experimentei esta universalidade. Cozinhávamos, lavávamos a roupa, limpávamos. Era a vida do dia-a-dia. Uma vivência concreta onde se procurava que tudo servisse para nos amarmos uns aos outros. Depois, tínhamos aulas dadas por professores universitários com uma visão totalmente diferente daquilo que era a teologia, a moral e tantas outras realidades. E se na faculdade me debruçava sobre a história, ali alargava a minha vida sobre outros horizontes, completando a minha formação.

Foi também em Roma que começou a interessar-se pela formação do clero?

Comecei a convencer-me que efetivamente o prioritário na Igreja são os sacerdotes e, por isso, quando regressei a Portugal, para além do trabalhei na Cúria que terminava pelas quatro e meia, praticamente todos os dias, das quatro e meia até às oito, pegava no carro e ia visitar sacerdotes, particularmente aqueles que estavam a passar um período difícil. Ia ao encontro simplesmente sem nada pretender para mim. Daí nasceu um certo gosto e paixão, que ainda conservo, embora reconheça que não fiz tudo aquilo que seria de fazer. O meu gosto é que todos os sacerdotes fossem uma coisa só, mas é difícil. Aqueles anos de 1971/72/73, depois do maio de 68 de Paris, deixaram muitas marcas.

De que forma?

O Maio de 68 foi um fenómeno que se tornou rapidamente mundial. Alguns jovens eram fermento de uma sociedade nova. Sabíamos pouco sobre o que aconteceu em Paris, mas sabíamos que alguma coisa tinha acontecido e que havia alguns que estavam empenhados em fazer alguma coisa em Portugal. Sempre lidei com jovens e apercebi-me. Mais tarde, depois do 25 de Abril, a minha ligação com os jovens do MRPP, não com todos naturalmente, foi de muita proximidade e simpatia em termos de diálogo.

Sentia que a Igreja tinha de estar com os jovens?

O movimento dos Focolares reafirmou que temos de nos amar uns aos outros. Um amor que para ser universal tem de fazer uma experiência de pequenos grupos, mas depois alargar e chegar até onde for possível. Foi isso que senti: ir ao encontro conforme as possibilidades me permitiam. Nem sempre conseguia dialogar, falar e criar amizade com determinadas pessoas, mas entendia-me perfeitamente na cidade de Braga com pessoas que alguns não consideravam, gente que andou na União Nacional e outros partidos.

No 25 de Abril, era reitor na Igreja dos Congregados e, nessa altura, a sede do Centro Democrático Social, atual CDS, ficava ali ao lado. Como eram esses tempos?

É um dos períodos mais interessantes da minha vida. Houve ali um, dois meses em que a agitação era frequente. Tínhamos medo do que poderia acontecer e várias vezes as balas passavam perto. Havia manifestações, sempre contra: contra este ou aquele. Tive receio de que aquilo que estavam a fazer ao CDS o quisessem também fazer à Igreja. Nunca aconteceu.

O dia 10 de agosto de 1975 ficou marcado pela grande manifestação que culminou com o incêndio da sede do PCP, em Braga. Esteve por perto?

Estive na manifestação. Eram quase duzentas mil pessoas. Foi das primeiras manifestações em Portugal. Começou aqui, em Braga, com o discurso de D. Francisco Maria da Silva, um discurso inflamado e que terminou, depois, com um incêndio que ninguém sabe ainda explicar. O que é certo é que houve esse incêndio. A sede do Partido Comunista ficava a 200, 300 metros dos Congregados. Vinha da manifestação para casa e, passado pouco tempo, oiço dizer: “Está a arder a sede do Partido Comunista”. Não fui lá naquela altura, mas na manhã seguinte passei por lá. Esse regime unitário que queriam impor em Portugal encontrou uma reação muito forte, aqui no Norte.

Até que ponto a Igreja contribuiu para essa transição democrática?

A maior parte da Igreja defendia o regime antigo, mas adaptou-se com relativa facilidade ao que tinha acontecido, procurando, depois, desempenhar esse papel de equilíbrio. Os bispos falavam num regime democrático respeitador dos direitos e liberdades e havia muitas pessoas que acreditavam nisso. A passagem foi demasiado brusca. Não foi fácil.

Menciona com frequência a importância da universalidade na Igreja. Foi com naturalidade que escolheu como lema episcopal “Que todos sejam um”?

Já tive oportunidade de referir o núcleo do movimento dos Focolares: "Amai-vos uns aos outros". Um amor universal, em que cada um é respeitado como é. Um amor de tal modo que se consiga ser um só. Foi o chamado testamento de Jesus Cristo: “Pai, que todos sejam um para que o mundo acredite”. A unidade não é uniformidade. Às vezes pensa-se que unidade é que todos sigamos o mesmo caminho. Estamos no tempo do sínodo. Aquilo que importa é reconhecer esta pluralidade de caminhos, procurando percorrer o que é melhor e reconhecendo que cada um tem algo a dar de original e de insubstituível.

O erro está em pensar que alguém é que sabe tudo e vai resolver tudo. A pessoa mais simples, a pessoa mais humilde pode às vezes ter a ideia com mais valor. Esta universalidade orientada para a unidade que não é uniformidade era um caminho a percorrer e é um caminho a percorrer. Se nós, Igreja, fossemos capazes de dar interiormente este testemunho de unidade, o mundo acreditaria mais.

Inicialmente, usava a cruz episcopal com um cordão de ouro de família.

Sem família não somos nada. Foi uma simples coincidência. Alguém terá sugerido à minha mãe que o fizesse. O meu avô materno morreu relativamente cedo, numa altura em que havia quatro filhas, quatro raparigas solteiras a viver com a mãe. Segundo contam, havia uma dívida. A mãe terá dito: “Vamos trabalhar, porque se conseguirmos pagar esta dívida, cada uma de vós terá o cordão”. Naquela altura, a filha de um lavrador tinha de ter um cordão; o filho um relógio de bolso. Todas elas se empenharam, trabalharam e conseguiram pagar a dívida e a mãe deu um cordão às filhas. A minha mãe usava um e deram-lhe essa ideia de que podia ser um cordão onde poderia pendurar a minha cruz episcopal. Acontece que, esse cordão, a minha mãe já o tinha prometido à minha sobrinha-neta. Na altura, conversou-se e ela pequenita disse: “ah, não faz mal”. Essa cruz, que considero a da minha ordenação episcopal, não a tenho. No dia do casamento da minha sobrinha, peguei no cordão e na cruz e sem dizer nada a ninguém – evidentemente que as lágrimas apareceram de todos os lados – coloquei-o ao pescoço da minha sobrinha.

Deu aulas ao longo de vários anos. Isso ajudou-o a ser melhor padre e melhor bispo?

Quando falo disso, digo que fui mau professor. Quando voltei para Braga, estive a trabalhar na secretaria e coloquei a visita aos sacerdotes em primeiro lugar. Muitas vezes, não tinha tempo para me preparar suficientemente. Hoje faria de maneira diferente.

Falando sobre a relação do bispo com os padres, considera que uma maior proximidade poderia minimizar alguns problemas como a solidão, por exemplo?

A proximidade existe. A vida moderna é que é diferente. Como nunca, o bispo esteve perto e vizinho do sacerdote. Comigo os padres sabem que quase não é preciso marcar audiência. Basta só saber se estou. Antigamente era totalmente diferente. A vida de hoje faz com que o sacerdote se disperse em muitas coisas e não olhe para esta que é fundamental: a unidade com o clero e do clero com o bispo, e que articule a sua vida a partir daqui.

Dizia que na sua ordenação presbiteral houve um misto de apreensão e alegria. Quando foi nomeado arcebispo de Braga, aos 55 anos, esses sentimentos voltaram a assolá-lo?

Foi muitíssimo pior. Não sei se diria medo. Mais do que medo, diria confiança em Deus. Sabia o que é que significava ser arcebispo de Braga, com a sua história, com a sua tradição e com tanta coisa para resolver. Sentia temor, algum medo, mas uma confiança muito grande em Deus. Deus não abandona. Deus dá e quando estamos disponíveis, acontecem milagres, como aconteceram.

Quais eram os principais desafios que tinha pela frente?

A minha preocupação era a de que os sacerdotes juntos trabalhassem, rezassem, estudassem os diversos problemas e distribuíssem os trabalhos, começando a constituir equipas de trabalho sobre os diversos sectores. Nas homilias das ordenações, procurava sublinhar estas ideias, mas as circunstâncias não permitem que se faça sempre e se consiga aquilo que se quer.

Ficou responsável pelo pavilhão da Igreja na Expo 98. Foi uma experiência que o ajudou a ver para lá do mundo eclesial?

É uma das experiências mais interessantes da minha vida e que pouca gente conhece. Pertencia a uma comissão que procurou envolver todas as confissões religiosas – muitas efetivamente não quiseram –, ver como é que conseguimos adquirir o pavilhão, arranjar dinheiro, distribuir o tempo – numa hora estavam os católicos, noutra os budistas, os hinduístas. Procuramos fazer com que na exposição houvesse um espaço que significasse um pouco de silêncio, descanso, repouso, para dizer que o sobrenatural também existe.

Esteve à frente da Conferência Episcopal Portuguesa por duas vezes, entre 2005 e 2011. O que foi mais exigente neste período?

Ser presidente da Conferência Episcopal significa sobretudo gerar esta unidade e esta comunhão entre todos. Tem as suas dificuldades, alguns momentos de alguma tristeza, mas também de alegria. Em termos de trabalho concreto significou, sobretudo, a regulamentação da Concordata, o que implicou ligação com o governo, vários ministros: apresenta isto, corrige aquilo. Há coisas com as quais ainda hoje não concordamos, mas tivemos de as aceitar. Foi um trabalho muito difícil que me enriqueceu imenso também, me obrigou a dialogar com pessoas da Igreja e de fora também. Foi preciso fazer a ponte. Alguns aspetos não estão a funcionar como deveriam. Aceitou-se o que foi possível.

O que é que o continua a incomodar?

Pequenos pormenores. Não vale a pena trazermos para aqui. Não se conseguiu esclarecer o que significa "fins religiosos", o que é um problema nevrálgico que poderá vir a trazer problemas para a Igreja no futuro. Parece que é fácil de entender. A Igreja Católica tem uma interpretação e outros têm outra e era urgente esclarecer esse aspeto.

Participou em reuniões deste órgão ao longo de três décadas. Como foi evoluindo a discussão entre os bispos e os temas abordados?

A Conferência Episcopal Portuguesa é pequenina. Somos uns 30. Entendemo-nos todos perfeitamente bem. Às vezes, penso podíamos ser mais acutilantes em alguns documentos a trazer para a praça pública, sairmos um pouco do âmbito estritamente religioso e abordar digamos outras temáticas.

Refere-se a temáticas sociais?

Temáticas socias que deveriam ter uma intervenção colegial mais persistente. Às vezes, penso que podíamos entrar noutros problemas mais da realidade humana, mais concretos.

A Igreja está a perder voz no espaço público?

Houve um tempo em que a Igreja falava sozinha. No tempo da Cristandade, praticamente o meu tempo, a Igreja era tudo. Na aldeia onde nasci, quando o senhor abade falava, estava tudo dito e hoje não é bem assim. A Igreja perde e está a perder [voz] e tem de procurar entrar noutras temáticas, abordar outros assuntos e estar presente noutras questões que são novas, são humanas e porque são humanas têm de ser abordadas. Precisamos de católicos na política, universidade, pessoas que nos ajudem também a encontrar caminhos novos.

Conviveu com sete papas ao longo da vida. Que memórias guarda?

O mais próximo foi o João Paulo II. Tenho também uma simpatia muito grande pelo Paulo VI precisamente o homem do Concílio. Todos os outros, desde o Pio XII, João XXIII ou João Paulo I… É preciso saber entender cada Papa para a sua hora e para o seu momento.

Considera que o Papa Francisco está a fazer a necessária reforma na Igreja?

Rezo para que ele a leve a bom porto esta ideia do Sínodo, para que a Igreja universal o acompanhe nesta grande aventura. Penso que é o Papa para esta hora e para este momento, sobretudo a coragem de ouvir, ouvir de dentro e ouvir de fora. Ainda não nos habituámos a isso e não demos os passos que devíamos.

Este é aliás o primeiro Sínodo que começa de forma descentralizada...

Penso que agora, nós, igrejas locais, deveríamos ter a coragem de encontrar maneiras de poder dialogar com escritores, artistas, músicos. Sair, ir ao encontro, ouvir. Tenho um certo medo de que continuemos fechados nas nossas estruturas e a repetir mais ou menos a mesma coisa.

Falando sobe a atualidade política, como é que vê os recentes resultados das legislativas?

Não tenho opinião formada. O povo português pensa, vota e os resultados são os resultados.

Considera que as campanhas eleitorais foram esclarecedoras?

Penso que não. Quando acontecem as campanhas, gosto de olhar para os programas. Há assuntos não foram abordados suficientemente. Não sei se houve algum partido que tivesse dito: “A sociedade que nós queremos é esta, por este caminho”. O povo sentiu-se um bocado à deriva e votou em quem lhe parece que lhe pode dar resposta.

Prevê-se que o debate sobre a eutanásia seja retomado na nova legislatura.

Esse e muitos outros temas que não foram abordados pelos partidos.

Referiu-se anteriormente à eutanásia como um “problema cultural”.

Penso que o homem nunca será dono da vida. A vida é um dom. A realidade é esta. A vida é um dom e um dom que tem de ser preservado por cada um e ajudado pelas instâncias. Quando digo ajudado, refiro-me àquilo que cada um pode fazer, como tantas estruturas que existem e devem existir para poder saborear a própria beleza da velhice na sabedoria que tem.

A Igreja deveria ter uma voz mais ativa nesta matéria?

A Igreja tem de ter uma doutrina muito clara, muito nítida, mas que não pode apresentar na altura das eleições. Tem que apresentar sempre a sua doutrina. Temos muitos documentos, muitos meios de comunicação social e dá impressão que não passam. Perdemos também aí em floreados e não levamos as pessoas a refletirem sobre determinados problemas. Os bispos portugueses têm-se pronunciado sobre problemas importantíssimos. Bastaria por isto ou aquilo nos jornais, rádios, e outros lugares, ir trazendo esses problemas, explicando-os para poder criar uma nova mentalidade.

A criação da Comissão Independente para o Estudo de Abusos sexuais de Crianças na Igreja Católica é sinal dessa nova mentalidade?

É uma atitude que o Papa Francisco assumiu e que temos de concretizar. Não simplesmente para julgar o passado, mas para olhar para o presente e para o futuro que será sempre o mais importante. Em certas ocasiões, o passado mete-nos vergonha, mostra a fragilidade da própria Igreja e por isso mesmo o que é fundamental: nunca mais. Tudo isto que estamos a fazer tenha essencialmente este sentido e este significado, e que cuidemos das vítimas que possam existir.

Inicia-se agora um novo ciclo da sua vida. O que leva destas mais de duas décadas à frente da arquidiocese?

A vida continua. O sentido da vida de um sacerdote e de um bispo é a consagração e a entrega à causa do reino, procurando seguir o próprio Jesus Cristo e fazer com que o reino de Cristo se vá implementando no seio da sociedade. São 54 anos de vida de padre, 34 de bispo e 22 e meio de arcebispo. A vida será efetivamente diferente, não tanto de trabalho ativo. Gostaria que o resto da minha vida fosse passado neste testemunho e nesta alegria.

Como é que se passa uma pasta de 22 anos? Tem conversado muito com D. José Cordeiro, seu sucessor?

Não. Ainda teremos tempo, mas não precisamos de conversar muito. Eu tive o meu caminho e ele terá o seu. A Igreja tem as suas balizas e, portanto, agora é seguir e andar em frente. O caminho em certo sentido está traçado e pronto.

Disse numa entrevista que “uma das coisas que falta aos bispos são lugares e espaços onde possamos ser nós”. Será agora uma oportunidade para isso?

É provável. Conversei com muita gente [ao longo da vida] – políticos, artistas, e por aí fora – e muitas vezes não tínhamos tempo para terminar. Deus queira que apareçam agora. Ficaria imensamente contente.

Em Braga?

Em princípio, permaneço em Braga. Procurarei descansar um pouco e verei o que o espírito me dirá. Não sou de estar parado, nunca estive parado e também não quero isso agora.