​Maior sinistralidade rodoviária. A culpa é só dos condutores?
13-03-2018 - 13:00
 • Celso Paiva Sol , André Peralta (sonorização)

Mais circulação, mais tecnologia e mais velocidade vs. menos fiscalização, menos planeamento e má sinalização. No ano passado, houve em Portugal 130 mil acidentes rodoviários, que fizeram 509 mortos e mais de 44 mil feridos.

Apesar das campainhas de alarme que soaram com os números de 2017, a sinistralidade rodoviária continua – em 2018 – a dar sinais preocupantes de agravamento.

Desde o início do ano, já morreram nas estradas nacionais 95 pessoas, mais 15 do que em igual período do ano passado.

Esta evolução negativa é ainda mais evidente quando se analisam os últimos 12 meses. De março de 2017 a Março de 2018, Portugal registou mais 83 mortos e mais 92 feridos graves, do que nos mesmos 12 meses anteriores.

O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, garante que ainda durante o primeiro semestre do ano, serão anunciadas medidas para atacar os dois principais problemas registados o ano passado.

Para o Governo, a sinistralidade dentro das localidades que deverá ser combatida com uma redução generalizada das velocidades. Já os acidentes com motos, o Governo pensa tornar obrigatória a carta de condução para motos a partir de 125 cc e regulamentar de uma vez por todas as inspeções periódicas a partir dos 250 cc.

Enquanto se aguardam novidades e em vésperas de mais uma Operação Pascoa das forças de segurança, a Renascença foi à procura de explicações para este retrocesso.

Mais circulação, mais tecnologia e mais velocidade

O Governo, por exemplo, refere-se a 2017 como um desvio numa década de grandes sucessos.

Maus resultados que se explicam sobretudo com aquilo que aconteceu dentro das localidades – onde se registaram 54% do total de vitimas – e nos acidentes envolvendo motociclos – que aumentaram cerca de 40%.

Já a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, sublinhando que não aconteceu em Portugal nada que não tenha acontecido também no resto da Europa, acrescenta mais algumas explicações.

Lembra que aumentou significativamente a venda, logo a circulação, de todos os tipos de veículos que, no caso das motos, tem havido uma maior utilização devido à mobilidade e economia que permitem e ainda que a tecnologia introduz cada vez mais fatores de distração ao condutor: não só os telemóveis, mas também os próprios computadores de bordo e outros dispositivos que pedem manuseamento durante a condução.

Já se a pergunta for colocada às forças de segurança, nesse caso a culpa recai sobretudo no excesso de velocidade, no álcool e nos telemóveis.

Mas não é tudo. Há ainda quem explique o agravamento dos números de forma mais empírica, com uma certa euforia coletiva, com origem em tudo o que tem posto Portugal na moda, para além da falada recuperação económica que nos dá confiança, até ao volante.

Falta fiscalização

A secretária-Geral da Associação Portuguesa de Sinalização e Segurança Rodoviária, aponta o dedo às estradas, à conceção da infraestrutura no seu todo que em Portugal passa ao lado das normas.

“Do ponto de vista das normas europeias, aponta-se para uma janela, um menu ou um cardápio de performance que nada tem a ver com a performance que é pedida pelos donos de obra, no território português”, diz Ana Raposo.

Sem respeito por todas as regras, e quase sempre pela solução que fique mais em conta. “O critério do preço mais baixo é aquele que preside à escolha da obra ou à escolha do material”, garante.

A crise e a troika não só desnivelaram a qualidade, como baralharam planos e calendários. Tanto uns como outros ainda não foram repostos.

“Antigamente, os gestores das rodovias tinham um plano. Um plano de acordo com as necessidades da própria infraestrutura, onde é preciso atuar. E para atuar era preciso, realmente, fazer o levantamento dessas necessidades e isso deixou de ser possível, porque hoje em dia as empresas não sabem o que aí vem. Não sabem se o gestor da obra vai investir menos, se vai investir um bocadinho mais. Não há, digamos, um plano estruturado, a médio-longo prazo. É um bocadinho ao sabor do vento”, sublinha Ana Raposo.

Falta de planeamento estruturado, desrespeito por normas internacionais e excessiva preocupação com os custos. A estas questões junta-se ainda um outro problema.

A falta de fiscalização, a falta de um olhar especializado independente que até podia acontecer através das auditorias de segurança rodoviária impostas por diretiva comunitária desde 2014, não fossem elas feitas quase exclusivamente em autoestradas e sob encomenda dos próprios donos da obra.

Diversos especialistas ouvidos pela Renascença concordam na atribuição de culpas às infraestruturas, que vão desde a multiplicação de lombas de controlo de velocidade – sem qualquer regra de visibilidade ou dimensão – à autorização indiscriminada de outdoors e outros equipamentos publicitários, sem respeito por distâncias de segurança ou pela inevitável distração que provocam nos condutores. Também rotundas e cruzamentos mal dimensionados face às estradas que lhe dão acesso, já para não falar nas ciclovias – agora tanto na moda – que cada camara constrói como quer, com a largura e a cor que lhe apetece.

Há quem diga, por exemplo, que basta olhar para o IP3 para se perceber a impunidade com que o Estado trata quem devia proteger.

No que diz respeito à sinalização em concreto, Ana Raposo diz que o principal problema está nas estradas municipais.

Fator humano tem culpas

João Dias, professor do Instituto Superior Técnico e especialista em Dinâmica de Acidentes Rodoviários, não concorda com tanta responsabilização da via, não lhe atribuiu aliás mais de 10%. Na sua opinião, o grande problema está no fator humano.

“As distrações são de fato a principal causa na origem dos acidentes. Mas quando vamos aos acidentes com feridos graves ou com vítimas mortais, aí de facto o álcool tem um peso muito grande e, particularmente, em velocidade. Em Portugal, a velocidade é a principal causa de morte em acidentes rodoviários”, garante.

O que este especialista não percebe é porque razão estando a velocidade mais do que identificada como problema número um continua a ser tolerada por políticos e legisladores em geral.

“A legislação portuguesa é permissiva em relação à velocidade. Se um condutor conduzir com uma taxa de alcoolemia superior a 1,2, automaticamente há um processo-crime. Se um condutor conduzir a uma velocidade acima dos 200 km/h dentro de uma localidade como Lisboa, é apenas uma infração muito grave”, exemplifica. Por isso é perentório: “não faz sentido um fator que apresenta maior risco do que o álcool, que é a velocidade, não ser crime e o álcool ser crime”.

Encontrar a manobra perigosa

Fator importante nestas equações é também a fiscalização a cargo das forças de segurança. Do domínio público são as grandes operações de Natal, Ano Novo, Pascoa e Carnaval, mas também as planeadas para as noites de fim de semana de Lisboa e Porto - ações que geralmente envolvem muitos efetivos, viaturas e radares.

Mas será que está garantida a eficácia no combate à sinistralidade?

José Alho, militar da GNR durante 30 anos, a grande maioria dos quais na fiscalização de trânsito, lamenta dizê-lo, mas acha que não.

É uma questão de estratégia e essa, pelo menos na GNR, está hoje em dia mais virada para as ações planeadas, do que para a realidade do dia-da-dia.

“As patrulhas viviam essencialmente das manobras efetivamente perigosas. São aquelas manobras da proibição de ultrapassar no traço contínuo, a não paragem ao sinal vermelho no semáforo, a ultrapassagem com perigo de colisão com o veículo que segue no mesmo sentido ou em sentido contrário. Era quase inadmissível chegar ao destacamento sem que se trouxesse pelo menos algumas multas durante a patrulha, porque todos nós vemos a quantidade de manobras que se vê quando andamos duas, três, quatro horas na estrada. Isto foi-se perdendo”, lamenta.

José Alho, reformado há cerca de dois anos, compara os dias que correm com os tempos em que existia a Brigada de Trânsito, essa sim a grande referência da fiscalização.

Agora a prioridade vai para as operações programadas, como quem cumpre missões por objetivos, aquelas que acabam por render montantes avultados em contraordenações e onde, às vezes, até se conseguem ter câmaras de televisão como testemunhas.

As multas estão garantidas, porque qualquer veículo – mesmo parado – terá sempre infrações para punir.

“Não vejo esta vocação, esta atitude, esta maneira de estar. Porque hoje é muito fácil mandar parar um pesado de passageiros, inserir-lhe uma pen e detetar dez, 20, 30 multas… 30 infrações no tacógrafo digital. Isso é muito fácil hoje. Então e a manobra? Encontrar a manobra perigosa dá muito trabalho: nós temos que andar no meio do trânsito, muitas vezes em carros descaracterizados, e isto dá trabalho”, explica.

Sobre a temática há outras contas que interessava conhecer, por exemplo, como está o desempenho das escolas de condução, ou melhor, saber em que escolas e centros de exame foram tiradas as cartas dos responsáveis pelos acidentes mais graves. Ou, ainda no mesmo capitulo, saber com rigor se têm algum crédito as queixas contra as chamadas escolas “low-cost”.

Da mesma forma, seria interessante conhecer os resultados de ano e meio de funcionamento do Sistema Nacional de Controlo de Velocidade – os 30 radares espalhados por todo país, onde se gastou mais de 3 milhões de euros – ou ainda, afinal, que resultados está a ter a aplicação em Portugal da carta por pontos.