Crise energética. Futebol português não pensa em acabar com jogos à noite
21-11-2022 - 06:40
 • João Carlos Malta

Mesmo com as faturas de energia a duplicarem ou a triplicarem, a Liga e os clubes não parecem querer tocar nos jogos noturnos cujo fim prejudicariam os canais televisivos. E até há jogos diurnos em que as luzes têm de ser ligadas. Entretanto, há já quem tenha de trocar aquisição de jogadores para fazer face ao aumento da fatura energética.

Numa altura em que todo o mundo se debate com constrangimentos no acesso à energia, a fatura dos clubes de futebol em Portugal só tem uma tendência, nos últimos meses, a de crescimento. Pelo menos duas vezes mais, na maior parte dos casos, mas muitas vezes o valor é agora três vezes superior. Mesmo com a introdução de poupanças no uso e com a troca de equipamentos por outros mais eficientes.

A dimensão do clube conta para o tamanho do aumento dos custos. No caso de um grande clube, como o FC Porto, a fatura passou de 1,2 milhões para três milhões, e num clube como o histórico Belenenses a conta da luz passou de repente de quatro mil euros para 18 mil euros.

No caso do clube do Restelo, se a fatura se mantiver igual até ao fim da época valeria cerca de um terço dos 600 mil euros orçamentados para o plantel da equipa principal.

E se num dos três grandes a subida destes custos se acomoda no orçamento com alguma facilidade - no caso dos dragões o peso no orçamento global passa de 0,5% para 1,5% - há outros casos como o da Oliveirense, clube icónico do hóquei em patins e basquetebol, em que as consequências são muito mais palpáveis.

“Temos de colocar ali 3 ou 4% do nosso orçamento para a energia. Não temos hipótese. Vamos ter de contratar menos um jogador por ano para fazer face aos custos”, salienta à Renascença, o presidente do clube nortenho Horácio Bastos.

“O orçamento vai ser igual. Temos é de canalizar o dinheiro para outros recursos que não jogadores”, acrescenta.

Luzes acesas

E se na Alemanha, no Luxemburgo e mesmo em Inglaterra há já clubes a deixar de jogar à noite para poupar luz, em Portugal esse parece um cenário muito distante. Ninguém, pelo menos para já, o quer agarrar.

O presidente do Paços de Ferreira, da I Liga, Paulo Meneses, não acha essa seja uma solução. “Não posso querer que a televisão seja um dos parceiros principais do futebol e depois estragar-lhe o negócio. Temos de tentar ter uma regra na vida que é o chamado bom senso”, começa por dizer.

Meneses afirma que o futebol tem de ter capacidade de inventar soluções “que nos permitam ser sustentáveis”.

Os castores estão atualmente com uma fatura energética que pode chegar aos 200 mil euros anuais, o que equivale a 5% do orçamento total do clube.

O responsável pelas infraestruturas do FC Porto, Ricardo Carvalho, em declarações à Renascença, alerta para outra realidade nesta discussão: ter jogos durante o dia não garante que as luzes vão estar desligadas.

O canal responsável pelos jogos no Dragão, a SPORT TV, muitas vezes exige aos clubes, sobretudo no inverno, que liguem as torres de iluminação a partir das 15h00. Ricardo Carvalho diz que há cinco ou seis anos fazer um jogo custava entre 250 euros e 300 euros, mas que agora o valor pode variar entre os 1500 euros e os 2000 euros.

Os problemas com aumentos já vinham de trás, mas a guerra na Ucrânia fez com que começassem a ganhar mais e mais importância.

“Temos de colocar ali 3 ou 4% do nosso orçamento para a energia. Não temos hipótese. Vamos ter de contratar menos um jogador por ano para fazer face aos custos", presidente da Olveirense, Horácio Bastos.

Os valores mencionados por outros clubes ouvidos pela Renascença não variam muitos, com exceção da Oliveirense que depois da aposta na iluminação do estádio com lâmpadas LED conseguiu que o custo baixasse para os 600 euros por jogo.

O clube de Oliveira de Azeméis adotou ainda a política de não acender a totalidade da iluminação, apenas 70%.

Ricardo Carvalho faz ainda outra distinção. Num estádio pequeno, descoberto, que tenha uma pista de atletismo, a poupança de fazer um jogo de dia pode ser efetiva “porque não tem sombras e consegue ter o estádio iluminado com a luz do sol”.

“No entanto, se for um estádio como o Dragão, coberto, com bancadas fechadas, o que acontece é que vai ter sempre custos energéticos. Se transferir o custo energético da noite para o meio da tarde, o valor a pagar pode ser ainda maior”, garante o responsável do FC Porto.

Por isso, defende, a questão do jogo ser de dia ou de noite pode ser secundária. Porventura, será necessário “uma adequação ou uma redução do número de horas de funcionamento [das torres de iluminação]”.

Relativamente a este tema, a presidente-executiva da Liga de Clubes, Helena Pires, diz que tem conhecimento de que algumas ligas europeias estão a trabalhar na redução dos jogos à noite, e garante que em Portugal “todos os investidores nesta área estarão sensibilizados para este tema”, mas ressalva que “nós somos uma Liga que temos muitos jogos diurnos”.

Não excluindo de todo a hipótese de no futuro isso vir a acontecer, “temos o outro lado da moeda, nomeadamente aqueles que estão a investir naquele que é o nosso negócio e que, portanto, também têm de ter algum retorno daquilo que é o seu investimento”.

“E, portanto, dizer a um operador televisivo que está completamente proibido de fazer jogos à noite, seguramente não será a solução”, concretiza.

Pires alega ainda que esta não tem sido, de resto, uma preocupação levantada pelos clubes.

Apesar da insistência da Renascença, a SPORT TV não quis pronunciar-se sobre o tema do aumento dos custos energéticos, nem sobre como o canal age nas transmissões televisivas diurnas em relação à necessidade de luz artificial.

O presidente do Farense, João Rodrigues, é uma voz que se junta a outras na afirmação de que a SPORT TV exige aos clubes que liguem as luzes, mesmo durante o dia para melhorar a qualidade da transmissão televisiva.

“Toda a gente sabe disso, não acontece, se calhar tanto como no Norte, porque no Sul nós temos uma luminosidade maior, mas a partir das 16h30 ou 17h00 é esse o caso”, afirma.

O mesmo dirigente afirma que num jogo à noite, a luz tem de estar pelo menos 4h30 ligada, “o que representa um custo brutal”.

A discussão na Europa

No futebol europeu a ideia de pôr fim aos jogos noturnos está a fazer um caminho ainda que deixe de fora os grandes clubes. Na Alemanha foi notícia que o Nuremberga, emblema com tradição no futebol naquele país, que agora milita da segunda divisão, não vai jogar à noite depois de a autarquia local decidir limitar o uso de torres de eletricidade.


As medidas dos clubes para poupar

  • reduzir o número e o tempo de utilização de lâmpadas
  • instalação de painéis fotovoltaicos
  • alterar horários de treino quando possível
  • mudança para equipamentos mais eficientes
  • substituição por lâmpadas LED
  • introdução de sensores de luzes
  • utilização dos aparelhos em horários mais baratos

"O gás e eletricidade podem ser escassos no inverno. É por isso que a cidade teve uma discussão renovada sobre onde podemos economizar energia", escreveu em comunicado a autarquia.

Também no Luxemburgo, a Federação de Futebol decidiu antecipar os jogos da Liga em uma hora.

As partidas, disputadas tradicionalmente aos domingos às 16h00, passam a começar às 15h00. A medida entrou em vigor a partir de 9 de outubro.

Em Inglaterra, a discussão não se passa ao nível da Premier League, onde os clubes muito abastados estão mais centrados em gastar fortunas nos passes de jogadores do que em poupar em energia.

Mas na parte de baixo da pirâmide, mais de metade dos clubes de divisões inferiores consideram que seria bom que os jogos começassem mais cedo, de modo a gerar poupanças.

FPF quer luzes ligadas à tarde

A Federação Portuguesa de Futebol não quis indicar nenhum elemento para falar sobre este tema, mas fonte oficial avança que a FPF “está atenta e tem monitorizado a situação e promovido o diálogo com os clubes no sentido de encontrar respostas para mitigar um problema efetivo”.

"Se transferir o custo energético [de acender as torres de iluminação] da noite para o meio da tarde, o valor a pagar pode ser ainda maior", Ricardo Carvalho, responsável pelas infraestruturas do FC Porto.

Na Liga 3, o Belenenses, que atravessa dificuldades que resultam do aumento dos custos, revela que num recente jogo com o Caldas, às 15h00, o Canal 11, detido pela Federação, recebeu uma notificação, uma hora depois, para ligar a luz.

“Obrigaram a ligar a luz na segunda parte quando ainda era de dia por causa da transmissão televisiva, e, portanto, às vezes também aqui há alguma falta de sensibilidade”, ressalva Patrick Morais de Carvalho, que adianta ainda que os clubes não são tidos nem achados na marcação das horas do jogo.

O presidente do Belenenses diz que o clube do Restelo é um dos mais prejudicados pelo aumento dos custos da energia, devido ao seu ecletismo e que, neste momento, por estar fora das ligas profissionais de futebol não tem sequer o dinheiro das transmissões audiovisuais.

Se os preços se mantiverem, o dirigente não vê outra alternativa que não seja o apoio do Estado com subsídios para a atividade desportiva.

Ainda há bem pouco tempo a fatura do Belenenses em energia baixou dos sete mil euros para os quatro mil euros, depois de investimentos em lâmpadas LED. Mas de repente a fatura subiu mais de quatro vezes, para os 18 mil euros. “Não há orçamento que resista”, garante Patrick Morais Carvalho à Renascença.

“Nós estamos completamente expostos ao mercado e pagamos a energia exatamente ao mesmo preço que qualquer multinacional”, lamenta.

A questão é absolutamente central, no entender do presidente do Belenenses, porque a energia é “um pagamento prioritário”. “Se não se pagar, chegam e cortam a luz e os clubes deixam de funcionar. Portanto, é uma despesa absolutamente prioritária”, reitera.

O mesmo responsável diz que num clube com quase uma dezena de modalidades e representada em todos os escalões, além da luz, os transportes têm também um peso absolutamente brutal. E aí os combustíveis estão também a comer uma parte substancial de recursos.

Regularmente, o Belenenses precisa, por semana, de alugar entre oito e dez autocarros. “Uma deslocação Lisboa-Porto que em condições normais custava-nos à volta de 650 euros, hoje pedem 1.300 euros”.

No quarto escalão do futebol português também o Sintrense tem a energia a pesar no orçamento. A fatura subiu em 600 euros, para um total de três mil euros. Ainda assim, o presidente José Sequeira, um engenheiro eletrotécnico que trabalhou 45 anos para a EDP, diz que essa experiência foi valiosa nesta fase.

Há três anos, mudaram todas as lâmpadas para LED. O clube tem quatro campos, especialmente na altura do inverno estão ligadas das 18h00 às 23h00 de segunda a sexta-feira.

Sequeira diz que o clube optou por mudar de comercializadora de energia “com um contrato muito favorável que tinha um valor fixo”.

Por esta razão, e ao contrário de muitos outros clubes, no Sintrense estão “confortáveis com a situação e não temos custos elevados com a história do aumento da energia”.

Os clubes de futebol, perante uma cada vez mais pesada fatura energética, têm adotado mudanças nas infraestruturas e alterações de comportamento.

O que estão a fazer os clubes

Regressando ao FC Porto, Ricardo Carvalho lamenta que algumas das infraestruturas do clube tenham já 15 anos e, portanto, estão já obsoletas. Algumas foram substituídas.

“Estamos a falar, em muitos casos, de equipamento de iluminação mais corrente que foi sendo substituído por outros mais eficientes”, indica.

Os portistas adotaram ainda sensores de iluminação nas zonas em que tal era possível, alteraram a programação de máquinas e substituíram equipamentos por outros mais eficientes.

No entanto, nem sempre é um processo fácil porque “há outros equipamentos que têm um tempo de vida muito superior a 15 anos e não podemos estar a substituí-los”. Ricardo Carvalho fala de sistemas de ar condicionado que podem ter preços entre os 50 e os 200 mil euros, e um tempo de vida útil grande.


Quanto subiu a fatura de eletricidade dos clubes (projeção anual)

FC Porto 1,5 milhões ↔ 3 milhões de euros (+100%)

Paços de Ferreira 60 mil euros ↔ 96 mil euros (+60%)

Oliveirense 41 mil euros ↔ 84 mil euros (+104%)

Belenenses 48 mil euros ↔ 180 mil euros (+275%)

Sintrense - 36 mil euros ↔ 43 mil euros (+19%)

Amora- 24 mil euros ↔ 34 mil (+42%)

(nota: os números refletem as estimativas fornecidas pelos clubes à Renascença entre um período pré-guerra e pré-crise energética global e os encargos anuais futuros)


Em termos de racionalização, Ricardo Carvalho diz que o FCP reduziu “os horários de iluminação de alguns locais”. “Por exemplo, ligamos e desligamos alguns lugares do estádio, e os locais de operação só estão ligados mesmo quando estão a ser usados”, refere.

Ainda em relação a horários, os portistas dizem aproveitar os horários em que se paga menos energia para arrefecer a água para os sistemas de ar condicionado. Ricardo Carvalho apresar de relativizar o impacto nas contas do clube, não minimiza o impacto que tem na gestão das infraestruturas, em que já representa 35% dos custos totais.

Em Paços de Ferreira, o clube fez a mudança de toda a iluminação dos campos de treino para LED, a exceção foi o estádio em que a mudança não compensaria porque as torres apenas são ligadas de 15 em 15 dias.

O clube comprou ainda um gerador por 60 mil euros.

A iluminação nova em todo o complexo custaria 250 mil euros, e os castores preferiram um modelo mais contido com um redirecionamento de projetores porque havia zonas do campo que estavam com demasiada iluminação e outras com carência.

Segundo o presidente Paulo Meneses, os pacenses tiveram “várias propostas de empresas que nos queriam fazer a iluminação, se nós fizéssemos uma concessão a 20 anos do espaço do estádio para que eles pudessem fazer a colocação de painéis fotovoltaicos e pudessem depois comercializar a energia”.

"Não há orçamento que resista e os clubes estão completamente ao abandono, entregues à sua sorte", Patrick Morais de Carvalho, presidente do Belenenses

Mas como a solução obrigava o Paços a tornar-se vendedor de energia, e o clube não tem vocação para o fazer, não avançou. Entretanto, o clube da capital do móvel já usa painéis fotovoltaicos para o aquecimento de águas sanitárias.

Para ultrapassar esta crise, Paulo Meneses diz que a Liga e a Federação se deviam juntar para conseguirem, com todos os operadores de mercado, encontrar uma solução “para que todos sejam clientes desse operador e tentar com isso um preço, uma tarifa, mais apetecível”.

Mais a sul, o Amora pondera a recorrer aos fundos do IPDJ (Instituto Português do Desporto e da Juventude) para o investimento em painéis solares. “Isso é o que nos ajudaria a ter ali uma boa rentabilidade”, admite o presidente do clube amorense.

Ainda assim, não resolve inteiramente o problema de ineficiência. “O que acontece é que, mesmo com essa ajuda, há um fator determinante que entra e pesa muito num orçamento como o Amora, que é o investimento nas baterias”, lamenta.

No início de novembro, a secretaria de Estado da Juventude anunciou que seria lançada a 7.ª edição do Programa de Reabilitação de Instalações Desportivas (PRID), programa que terá uma dotação de dois milhões de euros e que em 2023 visará exclusivamente o apoio a projetos de melhoria da eficiência energética destas infraestruturas.

O programa visa a reconversão dos sistemas de iluminação tradicionais para sistemas de tecnologia LED, tanto nas instalações de apoio como nas instalações desportivas; instalação de meios de energia renovável, por exemplo, painéis fotovoltaicos entre outros, para produção de energia para autoconsumo, sempre que tal se afigure viável; instalação de sistemas solar térmico para produção de Águas Quentes Sanitárias (AQS).

Apesar deste apoio, ele parece a alguns clubes uma gota no oceano. O presidente do Belenenses, Patrick Morais de Carvalho, critica o Governo por ter apoios para as famílias, para as empresas, mas deixar as coletividades desportivas fora do conjunto de apoio ao preço da eletricidade em 2023.

“Não há orçamento que resista e os clubes estão completamente ao abandono, entregues à sua sorte, quando na realidade prestam um serviço público e substituem em muitos casos o Estado naquilo que é a consagração de um direito constitucional que é o de os jovens poderem terem direito a praticar desporto”, remata.