Spotlight, um caso que já deu frutos
01-02-2016 - 08:41

Sabe bem ouvir o atual cardeal de Boston, Sean O’Malley afirmar que “os media ajudaram a Igreja a ser um lugar mais seguro para as crianças (…) obrigando-nos a lidar com o abuso sexual por parte do clero”.

Em 6 de janeiro de 2002, o jornal The Boston Globe, através da sua equipa Spotlight, começava a publicar os resultados de longos meses de investigação sobre pedofilia e abusos sexuais do clero na arquidiocese local. Foram dias terríveis para os católicos dos Estados Unidos e para a Igreja, perante a multiplicação de casos escondidos que, com a iniciativa dos jornalistas do Globe, saltaram para a praça pública. O escritor e comentador católico George Weigel chamou a este ‘Spotlight’ “a longa quaresma de 2002”.

Desde então, muita água correu. A Igreja, passado o estupor inicial, adotou uma política de tolerância zero à escala global, apurou a formação do clero e de outros agentes de pastoral, indemnizou milhares de vítimas dos abusos (só nos Estados Unidos, mais de meia dúzia de dioceses foram à falência por isso). E ainda recentemente o Papa Francisco não só criou uma Comissão Pontifícia para a Proteção das Crianças como tomou medidas para a responsabilização de bispos que encubram casos desta natureza.

O filme “O caso Spotlight”, do realizador Tom McCarthy, que se encontra atualmente nas salas de cinema, constitui um trabalho notável sobre a investigação jornalística que desembocou naquela edição de janeiro de 2002 do Boston Globe e de muitas outras que se lhe seguiram.

O resultado pode dizer-se que é um trabalho sério, que engrandece o jornalismo e o reconcilia consigo mesmo, com o seu papel histórico e com a sociedade. O trabalho de equipa sem cedências ao vedetismo; a direção e coordenação de cada passo das investigações; a gestão das responsabilidades do próprio jornal no silenciamento do problema dos abusos sexuais; a preocupação pela defesa dos direitos das crianças vítimas dos abusos; e a não concessão ao sensacionalismo são atributos desta representação de uma profissão em crise aqui resgatada pelo cinema (como já o fora com a atribuição do prémio Pulitzer por serviço púbico, em 2003).

Mais do que expor os abusadores ou as suas vítimas, esta obra de McCarthy confronta-mos com a obstinação de um sistema clerical em silenciar e perpetuar o silêncio das vítimas e dos próprios jornalistas. Neste sentido, sabe bem ouvir o atual cardeal de Boston, Sean O’Malley afirmar que “os media ajudaram a Igreja a ser um lugar mais seguro para as crianças (…) obrigando-nos a lidar com o abuso sexual por parte do clero”.

Pode dizer-se que Spotlight, como filme, é apenas metade de uma história triste e complexa. Felizmente existiu e ainda bem que já deu frutos.