“Passarão”… por cima de quê?
13-06-2018 - 06:15

Que interessa que a eutanásia seja um dos atos mais complexos e dilemáticos da vida humana? Que interessa que “despenalizar” não seja o mesmo (e seja pior) do que “legalizar (i.e., regulamentar)?

Quem se lembra dos referendos à despenalização do aborto em Portugal? Em 1998, o país dividiu-se ao meio, com vantagem residual do “não” (50,9% contra 49,1%). Em 2007, o PS forçou a repetição do referendo: dessa vez, o “sim” ganhou (59,2%) sobre o “não” (40,75%). Culminando a militância numa série de causas fraturantes que têm vindo a revolucionar padrões de família, de conjugalidade, de sexualidade ou de parentalidade, chegou-se agora à votação (parlamentar – não fosse um referendo dar resultado inconveniente para as esquerdas…) dos projetos de lei para a despenalização da eutanásia.

Na votação mais renhida, a proposta do PS foi chumbada por cinco votos. Não há problema, dizem os derrotados. Fez-se o “aquecimento” da “fraturância” e dos seus argumentos e normativos; depois de 2019, vitorioso o PS ou reconduzida a frente das esquerdas, eles voltarão à carga e a eutanásia passará, lá para 2020 ou 2021.

Que haja meio parlamento contra e uma larguíssima parte do país nada esclarecida e cheia de dúvidas pouco interessa aos iluminados. O povo, os votos e os deputados só são bons e inteligentes quando fornecem as vitórias por que a vanguarda anseia; quando não, há que dissipar a ignorância e o reacionarismo e porfiar até à vitória, porque as derrotas são meros empecilhos num caminho que alguém declarou ser de perfectibilidade teleológica – e por isso mesmo passível de ser imposto como revelação luminosa aos que ainda não a viram, apenas porque andam nas trevas…

Depois da votação parlamentar, Isabel Moreira, a procuradora-mor das “fraturâncias” sociomorais do PS, escreveu no «Expresso», a propósito da eutanásia, um texto intitulado “Passará”. Passará, clama ela, não porque, ao cabo de um verdadeiro debate médico, legal, social e ético, os portugueses manifestem significativamente a adesão a essa novidade, mas porque o direito à eutanásia é um separador de águas entre – e cito-a – a “dignidade” e o “obscurantismo” (sic!), a “democracia” e a “sacristia” (sic!), o “progresso” e o “terrorismo habitual” das “ladainhas” conservadoras (sic!) Nada de parar para pensar e zero de humildade. Que interessa que a eutanásia seja um dos atos – para quem o peça, para quem o auxilie, pratique ou testemunhe – mais complexos e dilemáticos da vida humana? Que interessa que “despenalizar” não seja o mesmo (e seja pior) do que “legalizar (i.e., regulamentar)? Que interessam as distinções entre eutanásia, distanásia (ou obstinação terapêutica), ortotanásia e suicídio assistido, bem como as discussões, necessárias, acerca do testamento vital, dos cuidados paliativos no SNS ou das estruturas para os cuidadores cuidarem de quem necessita? Tábua rasa, que a estrada unidirecional do “progresso” tem de percorrer-se rapidamente. Quem duvida, quem se opõe, quem pede tempo, não exerce um muito liberal direito a discordar ou a advogar prudência – é apenas um “rato de sacristia”, a diabolizar pelo autoritarismo moral dos novos jacobinos. Para usar os termos, prescientes e pedagógicos, do discurso do presidente da República neste 10 de junho, não há, nisto tudo, nenhuma “paciência para consensos”; apenas impera, e isso é mau, a “volúpia das ruturas”.

A eutanásia “passará” – garante Isabel Moreira (e outros), agora despeitados, no futuro vitoriosos. Os radicais adoram a lógica maniqueísta das “fraturâncias”. Como Robespierre ou Saint-Just doutrinavam no período mais extremista da revolução francesa, “não pode haver nenhuma liberdade para os inimigos da Liberdade”, porque ao supremo legislador compete “conduzir a humanidade ao que ele quer que ela seja”.