A fotografia noturna e esverdeada do general Christopher Donahue no aeroporto de Cabul, no dia 30 de agosto, segundos antes de embarcar como “o último militar americano a deixar o Afeganistão” entrará para a história. É quase tão icónica quanto a do último helicóptero a levantar voo do telhado da embaixada dos EUA em Saigão, a 30 de abril de 1975. Por tudo aquilo que o Vietname representou para o poder político de Washington, muitos recordam esta imagem como parte integrante do «United States Hall of Shame» (o contrário de «Fame»). Não sabemos ainda como será evocada, na memória futura, a fotografia do general Donahue.
Nas últimas semanas, as notícias e imagens provindas de Cabul têm sido horrendas, particularmente as resultantes do desespero e da aflição dos civis em fuga tentada, e do massacre do ISIS-K, a metástase do Estado Islâmico que já ali aflorou, perpetrado perto do aeroporto no passado dia 26. É compreensível e justa a comoção de todos; já o é menos o apontar de culpas singulares aos EUA e os jogos florentinos de oportunismo ou hipocrisia por parte das “boas consciências” de muita da esquerda.
Na narrativa politicamente correta, a “descolonização” americana do Afeganistão expôs as iniquidades “imperialistas” do Tio Sam, que há vinte anos “ocupava” aquela região do mundo. A retirada caótica foi o epitáfio lógico da invasão errada de 2001 – e o regresso dos talibãs é uma espécie de pé-de-página, cujas atrocidades se relativizam (onde anda o movimento Me Too na defesa da condição feminina afegã?...), ou cuja ação política se justifica como manifestação do “direito à autodeterminação” local.
Ora esta história tem, no mínimo, vinte anos. O 11 de setembro de 2001 justificava o direito dos EUA a procurarem, no Afeganistão, ou noutros santuários terroristas do tempo, os autores e cúmplices dos abomináveis atos de guerra sobre Nova Iorque e Washington. E legitimava a maior parte das opções e ações que, mesmo com erros e limites, os poderes americano-afegãos (houve um Estado e um governo afegãos) entretanto instalados foram realizando, e que se saldaram por uma indesmentível melhoria do nível de vida e de segurança das populações locais, poupadas aos talibãs e às razias do ISIS. Como é das regras gerais da comunidade internacional, teria um dia de chegar a retirada. E ela teria já chegado – sobretudo, poderia ter sido feita com melhores condições e resultados – se os Estados Unidos tivessem contado (muito) mais com o auxílio material e moral da comunidade dos países ocidentais e dos chamados moderados islâmicos, que sabem criticar tanto as chegadas, como as partidas, pouco aparecendo, no entanto, a partilhar as responsabilidades e custos do muito que medeia entre esses dois momentos.
Desde 1941, durante toda a guerra fria, no imediato pós-guerra fria e na atual era da incerteza, que explodiu no Médio Oriente após as frustradas “Primaveras Árabes”, os EUA foram, porque tiveram de ser, na ausência de outros, o gendarme do mundo – quero dizer, da civilização, com todas as suas imperfeições, contra a barbárie, com todo o seu comprovado horror. Joe Biden já chamuscou o seu mandato, cumprindo o acordado por Trump e prometido por Obama.
Mas a descida aos infernos a que se assiste agora no Afeganistão seria evitável se os EUA ali ficassem? E quem lhes agradeceria o serviço ou os ajudaria? Sim, a retirada americana redundou no vazio. Mas esse vazio, que o fundamentalismo terrorista rapidamente preenche, fazendo suas vítimas os que têm o azar de ali viver, também é da responsabilidade de quem sistematicamente abandonou os EUA no seu dilemático papel de gendarme do mundo.