Sobreviveu ao nazismo para levar Jesus às cadeias portuguesas. Morreu o padre Dâmaso Lambers
22-02-2018 - 20:12
 • Filipe d'Avillez

Cresceu no meio da guerra e desde pequeno que quis ser padre. Da Holanda à cadeia do Linhó vai uma grande distância, mais ou menos do tamanho de um coração inteiramente entregue a Jesus.

O padre Dâmaso Lambers morreu esta quinta-feira, no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa. O homem que levou Jesus para a cadeia tinha 87 anos. Durante anos a Renascença foi como a sua segunda paróquia.

O corpo do padre Dâmaso estará em câmara ardente na Igreja de Nossa Senhora do Amparo de Benfica, a partir das 16h00 de sexta-feira, dia em que haverá duas missas de corpo presente: às 17h30 e às 19h15. No sábado, haverá missa às 9h00 e, às 10h30, haverá nova missa presidida pelo cardeal patriarca de Lisboa. D. Manuel Clemente.

A seguir, o corpo sairá da Igreja de Nossa Senhora do Amparo, em Benfica para a casa mortuária de Alcabideche. As 16h30 vai à prisão do Linhó. Pelas 18h00, será cremado no cemitério de Alcabideche.

Hermano Nicolau Maria Lambers nasceu no dia 9 de junho de 1930 numa Holanda ainda a viver a Primavera depois da Primeira Guerra Mundial. Nada fazia prever as nuvens negras que em breve viriam estragar os bons tempos, semeando morte e destruição. Nada fazia prever que um dia seria conhecido como Dâmaso e que passaria grande parte da vida atrás das grades, pregando numa língua estranha, num país desconhecido.

Tinha 10 anos quando os nazis invadiram o seu país. O resto da infância e princípio da adolescência foram-lhe roubados pelos soldados alemães, os mesmos que apareciam de vez em quando na igreja onde os Lambers iam à missa. Na igreja estavam lado-a-lado com o inimigo, eram irmãos na fé, mas depois não havia misturas.

Foram tempos difíceis, passou-se fome, os jovens passavam os dias a procurar lenha para os idosos e os doentes, porque os invasores ficavam com o carvão todo. Numa mostra de generosidade, os alemães ofereciam sopa aos holandeses. “Era 99.9% água. Não alimentava nada, era ridículo”, recorda.

Morreram conhecidos, vizinhos foram fuzilados por ligação à resistência, mas nada abalou a fé do pequeno Hermano que ainda muito novo era dado a desaparecer de ao pé dos irmãos, sendo encontrado mais tarde ajoelhado no quarto a rezar.

Ainda decorria a guerra quando manifestou interesse em ser padre, mas os seminários tinham sido bombardeados depois de ocupados pelos alemães. Foi orientado por alguns padres da congregação a que mais tarde se juntou, os Sacerdotes da Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e de Maria, tendo sido ordenado em 1955, aos 25 anos. Adotou o nome Dâmaso e foi assim que passou a ser conhecido o resto da vida.

Queria ser missionário, queria ir para terras exóticas pregar a Boa Nova, dar a conhecer Cristo, e foi com desagrado que em 1957 recebeu ordens para rumar a Portugal, onde o cardeal Cerejeira pedia mais padres holandeses para as missões populares. Mas obedeceu, como toda a vida faria com os seus superiores, incluindo com o cardeal Cerejeira, a pedido de quem até se naturalizou português em 1962, uma decisão que foi mal recebida pelo seu pai, que o encarou e início como uma renúncia à sua identidade holandesa.

Este país para onde veio contrariado acabaria por o conquistar. Conheceu e tornou-se amigo de Monsenhor Lopes da Cruz, fundador da Renascença, e a sua colaboração com a Emissora Católica durou o resto da sua vida.

Amar os reclusos

Mas a sua grande vocação ainda estava para se revelar. Em 1959 deu uma conferência na prisão feminina de Tires e correu tão bem que o convidaram para dar mais, noutras prisões. Acabou por perceber que para poder ajudar os reclusos teria de se identificar totalmente com eles, oferecer-se totalmente a eles. “Para se meter no mundo dos presos é preciso renunciar a nós mesmos”. Primeiro como visitador, depois como capelão, ficou conhecido como o padre das prisões.

Ajudou incontáveis homens e mulheres, amava-os a todos plenamente. Não lhe chegava levar-lhes Cristo à prisão, ajudá-los com bens ou até com o dinheiro que tinha com ele – pois como recordou mais tarde um ex-recluso, havia muitos que se aproveitavam da sua bondade – e por isso fundou “O Companheiro” com a ajuda de alguns amigos, em 1987. A organização ainda existe e dedica-se a ajudar ex-reclusos a reintegrar-se na sociedade. Até ao fim da vida acontecia irem ter com ele na rua homens de quem já não se lembrava, a querer agradecer-lhe tudo o que tinha feito por eles.

O seu trabalho de capelania levou-o a Roma, foi recebido em audiência por João Paulo II, com quem falou alguns minutos. O que ouviu tocou-o profundamente, nunca o esqueceu, mas também garantiu que nunca o partilharia com ninguém.

Fundou a Associação Confiar e foi um dos fundadores das Aldeias SOS.

Costuma-se dizer que as homenagens chegam tarde, frequentemente depois da morte do homenageado, mas o padre Dâmaso foi exceção à regra. Em 2009 foi condecorado por Cavaco Silva com o grau de Grande Oficial da Ordem do Mérito; em 2011 recebeu uma homenagem da Prison Fellowship International, uma organização mundial de inspiração cristã que se dedica à pastoral prisional e em 2016 foi a vez da “sua” Renascença inaugurar uma sala com o seu nome e prestar-lhe um tributo público.

A mensagem que deixou nesse dia foi quase idêntica à que repetia todas as semanas, nas missas semanais que celebrava na emissora. Uma insistência no carácter cristão da Renascença. Podiam estar só dois ou três na capela, mas era ali, no sacrário ou no altar que estava o coração daquela organização e ninguém que lá trabalhava o devia esquecer.

Dava o exemplo. Era também esse o seu centro, o seu tudo. O seu Jesus “fantástico” que nunca se cansou de servir, que amava perdidamente. Fez a primeira comunhão aos sete anos e desde essa altura foram poucos os dias em que não comungou. “Eu vivo de manhã para a consagração e o resto do dia vivo a partir da consagração”, chegou a dizer.

A comunhão com Jesus agora é plena, face-a-face, e quem o conheceu pode adivinhar as suas primeiras palavras ao entrar no Céu. “Isto é fantástico”.