Economia e sociedade, depois do vírus
06-05-2020 - 06:11

Talvez seja útil referir as grandes mudanças dos últimos cem anos para se perceber o que pode vir no futuro.

Têm-se multiplicado as previsões de grandes mudanças económicas e sociais desencadeadas pela pandemia que estamos a sofrer. Muitas dessas previsões revelam, sobretudo, desejos de que se alterem, no quadro sócio económico futuro, alguns traços atuais que nos desagradam.

Infelizmente, nada garante que uma tal evolução positiva se concretize a médio prazo. E, no curto prazo (que poderá ser bem longo), temos de enfrentar uma brutal crise económica e social, que já trouxe fome em larga escala para países que eram, até há pouco, relativamente ricos – incluindo Portugal.

Por isso, em vez de olhar para o futuro, talvez seja útil referir as grandes mudanças dos últimos cem anos. Na Europa, há um século, muita gente encarava a democracia liberal, assente na economia de mercado, como algo ultrapassado – modernos, então, eram os totalitarismos soviético e nazi. Mas a democracia liberal e a economia de mercado regressaram em força após a II guerra mundial, que pôs termo à loucura nazi.

Já o comunismo soviético sobreviveu algumas décadas, implodindo por volta de 1980. Durante largos anos esse comunismo atraiu boa parte da intelectualidade europeia, que via nele uma alternativa ao capitalismo. O Plano Marshall, uma inteligente iniciativa americana para conter o comunismo na Europa ocidental, era então detestado pela maioria dos intelectuais de esquerda europeus.

Só que o comunismo soviético não era levado a sério pelas próprias populações por ele dominadas, graças a uma forte dose de terror. Desapareceu, assim, a alternativa ao capitalismo, o chamado “socialismo real”. Os exemplos que, a partir daí, se assumiam como “socialistas” eram, e são, de tal forma aberrantes – veja-se a Coreia do Norte – que não convencem ninguém.

O capitalismo ganhou a guerra fria, mas o triunfalismo dessa vitória foi contraproducente: muitos empresários e gestores capitalistas convenceram-se de que poderiam esquecer qualquer dimensão ética, abrindo a via para a procura do lucro sem olhar a meios.

Surgiu, assim, a chamada crise do “subprime”, em 2007, que colocou em evidência um preocupante grau de irresponsabilidade na gestão bancária e a ausência de ética em muitos negócios. A resposta à crise, sobretudo por parte dos EUA, foi pragmática e pouca ideológica, com o Estado a entrar maciçamente na economia para salvar empresas e travar o colapso. Reação semelhante se desenha, hoje, nos EUA – prevê-se que o orçamento federal venha a atingir um défice de 15% do PIB. E foram expostos certos mitos, como a pretensa capacidade dos mercados para se autorregenerarem (mais uma manifestação da ilusão de que os mercados não devem ter limites).

Mas o pragmatismo não chega – os EUA de Trump apostaram no protecionismo, na hostilidade às organizações multilaterais (da ONU à OMS), no “America first”, etc. desfazendo a ordem internacional que os dirigentes americanos haviam promovido após a II guerra mundial e perdendo a liderança mundial, até no combate ao covit19.

Na Casa Branca, hoje, não se acredita nas alterações climáticas. Nem se nota, ali, qualquer preocupação séria com a alarmante concentração de riqueza nas mãos de uma pequena minoria, concentração que será, provavelmente, um dos grandes problemas políticos deste século. Não me parece, assim, que venham aí reformas significativas na “economia que mata”, para usar a expressão do Papa Francisco.



PS. Obrigado, companheiras e companheiros de trabalho na Renascença!

Durante os últimos nove dias, até antes de ontem, estive hospitalizado, sem poder receber visitas. Não, graças a Deus não era o coronavírus, mas uma pancreatite. Custou-me aquele isolamento num quarto de hospital, após um mês e meio sem poder sair de casa. Mas foram para mim uma preciosa ajuda psicológica as manifestações de solidariedade e simpatia que recebi de inúmeros companheiros e companheiras de trabalho, jornalistas e não jornalistas. Obrigado, colegas!