Miguel Ángel Moratinos. "Todos merecemos a mesma proteção, não apenas as minorias"
10-12-2019 - 13:32
 • José Pedro Frazão

O Alto Representante da Aliança das Civilizações recusa alimentar um debate de maiorias contra minorias religiosas, pedindo proteção para todos, incluindo lugares de culto, direitos humanos e até nas redes sociais.

Miguel Ángel Moratinos foi durante largos anos o enviado da União Europeia para o processo de paz israelo-palestiniano. Há cerca de um ano, assumiu o cargo de Alto Representante da Aliança das Civilizações das Nações Unidas, cargo que já foi ocupado pelo antigo Presidente da República Portuguesa Jorge Sampaio.

De passagem por Lisboa, aceitou falar com a Renascença da sua nova missão, com a condição de não se pronunciar sobre outros temas. Mas a sua larga experiência no Médio Oriente ainda assim aconselha não apenas um diálogo entre religiões, mas uma autêntica aliança com compromissos comuns a todas as confissões.

Uma das suas prioridades como Alto Representante da Aliança das Civilizações passa por um mecanismo de reacção rápida no plano dos media, para respostas a uma situação de crise. Que instrumentos e acções concretas propõe?

Foi uma ideia do anterior Alto Representante da Aliança das Civilizações, Presidente Jorge Sampaio, que no seu tempo estabeleceu um mecanismo de alerta precoce, em colaboração dos governos de Espanha e Turquia. Funcionou muito bem aquando da crise das caricaturas do profeta Maomé. Isso foi sendo abandonado e quero reestabelecer isso. A liberdade de imprensa deve ser absoluta.

Pelo menos essa é a perceção no primeiro mundo ocidental...

Bem, também no mundo muçulmano pode conciliar-se o respeito e o conhecimento do outro com a liberdade de imprensa. O que tentaremos com esse mecanismo é colocar as coisas no seu contexto. Quando alguém diz algo, também tem que entender a posição e o relato do outro, sempre respeitando a liberdade de opinião. Este mecanismo poderia facilitar um maior entendimento e um respeito mútuo que, por vezes, infelizmente, não existe. Observámos um incremento muito negativo do que se denomina de discurso de ódio, difundido em relatos e narrativas através das redes sociais de enorme rejeição face ao que é diferente.

Como se faz essa luta?

Nos últimos ataques contra lugares de culto, houve um ponto de não retorno quando o próprio terrorista fanático supremacista transmitiu em directo o assassinato de inocentes, crentes muçulmanos em Christchurch, na Nova Zelândia [o massacre numa mesquita de Christchurch na Nova Zelândia que fez 51 mortos em que o atirador usou as redes sociais para transmitir o ataque em direto]. Isso foi a gota que fez transbordar a paciência, levando ao entendimento de que não podíamos continuar a aceitar que por razões tecnológicas ou uma série de algoritmos que as grandes companhias do mundo do sector não controlam, fossemos incapazes de controlar e eliminar todo esse tipo de transmissões extremamente negativas, diria delituosas. O Plano de Acção de Christchurch é uma série de medidas concretas, exigentes, que estamos a trabalhar com os operadores de redes sociais, Google, Facebook, Twitter, para que travem e limitem a distribuição e difusão de mensagens que transmitem ódio e a rejeição do outro, de religiões e culturas diferentes. Isso está a avançar.

O populismo é um obstáculo acrescido para o seu trabalho?

Sem dúvida, mas é o que temos que enfrentar. Vivemos tempos de mudança e de transformação.As pessoas recebem múltiplas mensagens e falta uma narrativa clara que explique as chaves reais do que é uma religião e uma cultura diferentes. E que se possa entender de modo positivo, para que nos respeitemos e tenhamos uma noção de como construir no futuro uma convivência. Faz falta um trabalho ao nível educativo, a médio e longo prazo, criando sociedades e cidadãos respeitosos com o outro, que entendam as vantagens da diversidade e multiculturalismo. E ao mesmo tempo falta que os distintos governos em cooperação com as companhias dos media encontrem um código de conduta que permita regular adequadamente essa situação. Que não afecte a liberdade de opinião mas que ao mesmo tempo respeite outras culturas e pensamentos.

Estamos muito longe disso?

Não tanto. Creio que há consciência de que há que ir por esse caminho. Mas como sempre ocorre nestes momentos de crise e de enorme incerteza, os que gritam e provocam mais são os que são mais ouvidos, até mais do que escutados. Faz falta que a outra grande maioria silenciosa, que sofre todo este tipo de atitudes, tome consciência de que tem que se mobilizar e apoiar todas as políticas a favor de um entendimento.

Nessa medida, como vê atualmente o diálogo interreligioso?

Houve um movimento muito positivo que se está a desenvolver e de que fui testemunha quando tive que colocar no papel este plano de protecção de lugares de culto. Com todos os contactos com lideres religiosos, organizações e confissões de todas as índoles, constatámos que embora houvesse uma "solidariedade afectiva" depois de um atentado, ela expressava-se mas logo cada um ia para a sua casa. Agora começam a dar-se conta que todos são objecto e objectivo de ataques e que todos têm que trabalhar juntos. Têm a mesma preocupação, o mesmo sentimento de fragilidade e de medo. Por isso, têm que começar a criar uma agenda positiva, preventiva, antes que os ataques surjam. O que chamamos de dialogo interreligioso está a desenvolver-se cada vez com maior frequência. Mas isso não é suficiente. Não basta que os líderes religiosos alcancem acordos, criem agendas positivas, falem com os seus seguidores e lhes expliquem os valores e semelhanças das outras confissões e crenças. O que faz falta é que também eles falem com os líderes políticos, com as comunidades de vizinhos, com a sociedade civil, com os actores que podem influenciar para criar um universo de tolerância e de entendimento que é muito necessário.

Trabalhou muito no Médio Oriente e conhece a situação dos cristãos naquela região....

O último grande documento que é para nós todos hoje uma referencia chama-se "Fraternidade Humana em prol da paz mundial e da convivência comum" assinado por sua Santidade Papa Francisco e pelo Grande Imã de Al-Azhar do Egito. É um documento diria constitucional da nova forma como as diferentes religiões monoteístas se podem entender. Há um salto qualitativo onde se identifica um conceito muito positivo de cidadania, de igualdade cidadã. É um conceito que vai para lá da protecção de minorias, que é um conceito algo defensivo, onde, por exemplo, temos que proteger a minoria cristã no Médio Oriente porque são objectos de ataques. O que os grandes representantes dos mundos muçulmano e católico dizem é que somos todos iguais, todos merecemos a mesma proteção. Não é por serem minorias. Ser muçulmano num país católico ou ser cristão numa comunidade árabe muçulmana não pode implicar sofrer discriminação. Estamos a trabalhar em conceitos positivos de igualdade. A Carta de Medina e os textos do Corão abordam esta igualdade de cidadãos que não têm que ser discriminados por pertença a esta ou aquela religião. Sobre este conceito positivo, temos que trabalhar desde logo na Aliança das Civilizações e no nosso diálogo com os distintos actores e em particular com os representantes religiosos.

Trabalhou nas crises mais difíceis do mundo, como o conflito israelo-palestiniano, que permanece sem solução. Acredita no diálogo ?

Não é uma questão de acreditar. É simplesmente a única maneira de superar as crises. Diálogo é uma condição sine qua non. Sem diálogo não há solução. O que não significa que o diálogo conquiste tudo. De facto, a denominação de nossa organização é uma Aliança de Civilizações das Nações Unidas. Houve algumas tentativas de instituir um Diálogo de Civilizações e nós propusemos como Governo Espanhol em 2004 o lançamento desta iniciativa chamada Aliança. Na sua justificação conceptual queríamos superar o diálogo. O Diálogo é sempre necessário, mas é insuficiente. Queremos chegar a uma Aliança, um compromisso, uma vontade de trabalhar juntos para superarmos as dificuldades. É a única tarefa que nos resta fazer.