"É fechar a escotilha" e enganar a saudade. Submarino “Arpão” em missão inédita de 120 dias
04-04-2023 - 06:13
 • Liliana Monteiro (reportagem) , Salomé Esteves (grafismo)

Trinta e cinco tripulantes seguem a bordo do submarino “Arpão” numa missão histórica no Atlântico Sul. Vai desenvolver ações de cooperação bilateral e multilateral, e de presença e diplomacia naval, no âmbito da iniciativa Mar Aberto, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, recolhendo informação sobre práticas ilícitas no Golfo da Guiné. A bordo tenta-se trancar as saudades e colocar na mesa iguarias portuguesas.

O submarino “Arpão”, da Marinha portuguesa, larga esta terça-feira do Alfeite, em Almada, rumo à África do Sul, onde vai estar no Dia de Portugal. A bordo leva 35 tripulantes.

A viagem realiza-se no âmbito da missão Mar Aberto, que prevê a recolha de informação para ser entregue não só a Portugal como à NATO e parceiros europeus. Pelo caminho o Arpão vai vigiar e recolher informações sobre narcotráfico, imigração ilegal e pirataria, principalmente, no Golfo da Guiné.

Vão ser 120 dias de uma viagem que passa por Cabo Verde (Mindelo), Brasil (Rio de Janeiro) e pelo Golfo da Guiné, Luanda e Marrocos (Casablanca), naquela que será a maior viagem no Atlântico Sul, com este submarino a visitar dois continentes e cinco países.

Com 68 metros de comprimento, o “Arpão” tem 45 dias de autonomia e está nas mãos da Marinha desde 2010.

Durante a missão o submarino “Arpão” contribuirá, ainda, para a segurança marítima numa área de operações situada no Atlântico Sul, compreendida entre a costa do Brasil e a costa ocidental africana.

São 13 os operacionais sempre no ativo, 24 sobre 24 horas, entre eles estão dois sargentos, um da área mecânica outro elétrica.

35 militares embarcam em missão inédita

O “Arpão” vai ficar durante quatro meses nas mãos de 32 homens e três mulheres numa missão que vai fazer história por ser a mais longa que já realizou no Atlântico Sul. Estão previstos mais de 25 mil quilómetros de navegação e 2.500 horas de operação, acompanhada também em terra por uma equipa de engenheiros.

O cabo Marco Figueiredo é eletromecânico e o responsável pela manutenção de baterias, pelo motor principal, equipamentos.

“Já sinto o coração apertado, levo fotografias da família e uma mensagem no cacifo para ler cada vez que o abro”, diz à Renascença.

O cabo Figueiredo revela a estratégia para se sentir mais próximo da família: “Criei uma forma de ultrapassar isto e pego no telemóvel e mando SMS para a minha esposa mesmo a navegar e quando atraco essas mensagens saem. Digo: ‘hoje correu bem o dia e como estão as coisas aí em casa?’ Uma forma de partilhar o meu dia e contornar a saudade, claro que custa estar longe tanto tempo”.

Vê na guarnição uma família, uma equipa composta por uma maioria de oficiais e sargentos não esquecendo os praças. “Sabemos quando um elemento está mais em baixo, há sempre uma conversa, uma brincadeira, mas quando deitamos a cabeça na almofada a saudade vem”, admite.

O capitão de fragata Taveira Pinto é o comandante e é ele que nos leva ao interior do submarino. “Vamos descer, é uma escada vertical, pensem que têm um degrau por baixo e é um pé a seguir ao outro”.

Mão firme na escada estreita e em linha reta mesmo até ao interior, descemos, e lá estamos nós em pleno submarino onde o cinzento frio domina o ambiente, onde tudo é metálico e de pouco conforto, onde cada uma sabe que posição ocupar para que tudo fique organizado num espaço que parece pequeno para tanta gente.

É com orgulho que o comandante fala do “Arpão”. “O submarino navega de três formas: à superfície, em imersão à quota periscópica com os mastros do lado de fora ou então à imersão profunda”, explica.

O capitão Taveira Pinto prossegue com a descrição do submarino: “o Arpão é um charuto de aço resistente e é coberto pela fibra de vidro que dá forma dinâmica ao navio e protege o casco e não só. Depois tem a torre que dá estabilidade e evita que ande às voltas e serve para proteção dos mastros”.

Estamos abaixo do nível da água, “o navio tem sete metros desde a linha de água até ao fundo. Na proa temos oito tubos lança torpedos, mísseis e minas. Aqui já próximo temos um espaço dos sargentos onde fazem refeições e algum trabalho técnico porque a mesa é longa. O corredor é de passagem, mas também é o espaço dedicado às refeições dos praças”.

O comandante explica que a guarnição navega a seis horas de trabalho e seis horas de folga, “no período de descanso aproveitamos para comer, fazer higiene e dormir”.

Ao contrário de equipamentos do passado, a guarnição tem hoje camas individuais, abandonando-se o princípio da “cama quente” (cama que era usada por mais do que um militar).

Camas com 60 centímetros de largura

Passamos pelas camaratas e é lá que encontramos a sargento Paula Oliveira. Ficam paralelas ao corredor central do submarino, os oficiais e o comandante têm espaços maiores e mais reservados, os sargentos e praças dormem numa espécie de beliche com três camas pequenas de 60 centímetros de largura. Em frente à cama têm os dois cacifos atribuídos a cada elemento da guarnição e onde guardam os poucos pertences.

“É onde temos de meter tudo, temos este e um pequenino. Não temos facilidade em lavar roupa por causa do limite da água, só tomamos banho dia sim dia não, também não lavamos roupa como em casa e tento trazer roupa para a viagem toda, antes de atracarmos costumamos lavar a roupa da cama. O colchão tem 60 centímetros de largura, medi-o porque tive de comprar um sobre colchão para ser mais confortável para os quatro meses de missão, só vamos estar 20 dias atracados e o resto é sempre a navegar”, conta-nos a sargento de 38 anos.

Questionada sobre como é partilhar o espaço com muitos homens, responde que “são super respeitadores”.

“Eu fecho a cortina, os camaradas que dormem aqui comigo são todos homens, já sabem que se estiver fechada perguntam se podem entrar e se não estou vestida, peço para esperarem e visto rápido as calças e uma t-shirt. Para tomar banho a logística é outra, não é um sítio fácil, eu sou grande e não consigo vestir e despir no chuveiro como muitos fazem e então vou enrolada na toalha sem qualquer problema”, revela.

Em cima da cama, que está situada no meio de outras duas, tem dois livros bem grossos que diz ter pedido à irmã e que vai levar na missão para que a mente viaje e saia do fundo do mar.

E como é o descanso?

“Tenho de usar tampões na maioria das vezes. Se estiver muito cansada consigo dormir logo principalmente se fiz noite, saio, como, treino e vou para a cama. Alguns ressonam, há sons característicos do navio. Há um grande respeito e não se acende a luz, mas o barulho é mais difícil de controlar.”

Paula Oliveira é uma das três mulheres da guarnição e tem uma função muito importante no submarino. “Como podem calcular não temos janelas para o exterior, quando estamos em imersão profunda é através dos sonares que conseguimos saber onde andam navios e eu sou responsável por manter esses equipamentos a funcionar”.

Descreve-nos a missão como a mais exigente que já realizou, tanto a nível profissional como pessoal.

“Tenho uma filha que faz três anos pouco tempo depois de chegarmos desta missão, é difícil porque temos de gerir a vida a bordo e em casa. Em relação à saudade da minha filha, é fechar a escotilha e tentar não pensar”. Diz-nos estas palavras de lágrimas contidas nos olhos, sublinhado que são muitos os que deixam filhos em terra e, por isso, se fala muito sobre eles a bordo,

“Falamos todos sobre os nossos filhos e coisas que aconteceram antes de embarcarmos, saudade, ansiedade, não temos comunicação com o exterior, já está a custar muito. A primeira tirada [viagem] são 11 dias e vai haver uma de 29 sem saber nada do exterior e isso inclui filha, pais, de ninguém, nada.”

Entre homens e mulheres não há diferença, mas, “somos um bocadinho mais picuinhas: ‘este chinelo não pode estar aqui! Esta mesa está suja!’ Gostamos de ter tudo mais arrumado e organizado. Há homens assim, mas as três mulheres a bordo são mais exigentes”.

Temperaturas mais baixas para evitar cheiros a bordo

Cumprir missão num submarino é ficar com o registo de vários cheiros na memória, por isso mesmo há alguns controlos que se fazem. “Tentamos que a zona onde descansamos tenha temperatura mais fria para evitar cheiros, para não se transpirar tanto, aqui dorme muita gente”.

O WC já permite tomar duche, que não é diário. O comandante Taveira Pinto explica que “as casas de banho da guarnição têm dois chuveiros, dois lavatórios e duas sanitas”, é das mais evoluídas.

Cozinha portuguesa, com certeza

E porque a comida também ajuda a matar saudades a bordo, a ementa do “Arpão” inclui pratos típicos portugueses. Afinal, a comida é também responsável pelo conforto emocional e os doces não vão faltar. A bordo seguem vários mantimentos que serão repostos a cada porto onde vai atracar o submarino.

A sargento Paula Oliveira afirma que os cozinheiros são dois homens, mas que durante a noite vai algumas vezes fazer bolos ou sobremesas para o dia a seguir ou para o turno que está a trabalhar, sublinhando que o mais difícil é gerir quantidades, a loiça é pouca e por vezes tem de se lavar para fazer nova dose.

Ponto mais crítico da missão: Golfo da Guiné

A parte mais complicada da missão está identificada, explica o comandante Nuno Pereira, da Esquadrilha de Subsuperfície.

“O submarino tem uma característica única, a invisibilidade, sobretudo o Golfo da Guiné é uma área que sabemos que tem ilícitos transacionais, narcotráfico, imigração ilegal, pirataria, que o submarino vai observar sem interferir com o ambiente externo porque é um veiculo descaraterizado que circula de forma invisível e vai observar sem ser observado. A recolha dos dados vai permitir, juntamente com a NATO e parceiros europeus, analisar a movimentação dos navios à superfície.”

Aprontamento tenta evitar surpresas e resgates da guarnição

O comandante Nuno Pereira revela que há quatro meses que se faz o aprontamento para esta viagem, técnico e humano.


“O Hospital das Forças Armadas (HFAR) faz uma tabela de risco, há um check-up geral para garantir prontidão de 120 dias de missão. São exames de estomatologia, raio-x ao tórax, análises para garantir que o risco é o mínimo possível e para não termos de evacuar pessoas em alturas em que estamos muito longe de terra e não é fácil depois retirar alguém. Temos muito a lógica de quem vai para o mar avia-se em terra.”

Já o comandante Taveira Pinto acrescenta que, “quando estamos a navegar em imersão, não podemos estar muito pesados se não vamos para baixo, nem muito leves se não vamos para cima”

Ora, é com o peso certo que o “Arpão”, submarino da classe Tridente com capacidade de ir até aos 300 metros de profundidade, parte rumo à África do Sul com regresso marcado para o início de agosto.

Será a primeira vez que um submarino português cruza a linha do Equador.