Jorge Silvério: “A ansiedade que os jovens atletas revelam, muitas vezes, passa pelo comportamento dos pais”
10-10-2024 - 08:00
 • Carlos Calaveiras

“Não está a haver mais casos de saúde mental nos desportistas”, mas sim mais abertura. No dia internacional da saúde mental, a Renascença conversa com o psicólogo do desporto Jorge Silvério.

Esta quinta-feira, 10 de outubro, é o dia mundial da saúde mental. A Renascença falou com o professor Jorge Silvério, psicólogo do desporto, que dá conta da maior abertura que há agora para discutir as questões da saúde mental entre desportistas. Mais de 20% dos atletas têm problemas neste âmbito e a ajuda de profissionais tem falhas, mesmo no alto rendimento.

No final da época passada, o treinador Jurgen Klopp anunciou um “ano sabático” após vários anos de intenso trabalho e sucesso. O que é que isto nos diz sobre o desporto atual e a pressão a que estas pessoas estão sujeitas?
É uma excelente pergunta. Eu diria que hoje em dia o desporto acaba por ter um alcance muito importante para as várias sociedades e esta importância que o desporto tem – sobretudo o futebol, que é a modalidade que acaba por ter mais preponderância – traz associado um conjunto de coisas positivas: notoriedade, reconhecimento, o salário (não para todos), mas depois também traz algumas coisas que são negativas e que são consideradas desvantagens: a enorme pressão que um treinador sofre de todos os lados, da comunicação social, dos adeptos, dos dirigentes.

Nem todos os treinadores têm características de personalidade que permitem lidar bem com isto. E, depois, há alturas em que isto se acentua mais. Percebo perfeitamente essa vontade de descansar um bocadinho, de ganhar qualidade de vida, de estar com a família, de fazer coisas com tempo. Percebo perfeitamente essa necessidade de dizer “vou parar um ano ou dois ou o que seja para me dedicar a outras coisas e para ver se consigo descansar e depois voltar outra vez com motivação e com vontade”.

Cada vez há mais casos que se vão sabendo de desportistas com problemas de saúde mental. Será caso para dizer que o desporto faz mal à saúde?
[Risos]. Aquilo que é a minha perceção – e são mais de 30 anos de trabalho enquanto psicólogo de desporto – é que não está a haver mais casos de saúde mental nos desportistas, mas está a haver uma coisa: os desportistas a falar publicamente sobre isso porque antigamente não se falava. O desporto sempre foi um meio muito fechado e o simples facto de se falar e de se reconhecer que há problemas de ansiedade, depressão ou dificuldades em conciliar a vida profissional com a vida pessoal, era visto como fragilidade ou vulnerabilidade e, portanto, não se falava.

A partir do momento em que se começou a falar abertamente sobre isso, nomeadamente alguns atletas icónicos como o Tiger Woods, o Michael Phelps, a Naomi Osaka e a Simone Biles, abriu-se a porta para que outros atletas percebessem que aquilo não acontece só com eles. Se os seus ídolos falam sobre isso, então eu também posso falar e, sobretudo, mais importante do que falar, posso pedir ajuda porque isto não acontece só comigo e não sou eu que estou a ter um problema específico.

Certo.
Depois, em relação à pergunta em concreto, o desporto, sobretudo ao nível da alta competição, tem muitas vantagens para a saúde e tem alguns inconvenientes. Neste caso estamos a falar da saúde mental e se isto não for acautelado pode, de facto, ser negativo. A questão é: temos psicólogos que são especialistas nesta área e, tal como trabalhamos a parte física, a parte técnica e a parte estratégica, também faz sentido que haja pessoas que nos ajudem a trabalhar a parte mental ou a parte psicológica por forma a prevenir que estes problemas aconteçam.

Nós temos muito a ideia de remediar. “Estou com um problema de ansiedade ou depressão ou desmotivação ou de concentração e vou procurar ajuda”, mas isto já é remediativo, ou seja, só estou a procurar ajuda depois de identificar o problema. Agora, se nós, antes de termos o problema, estivermos a trabalhar com pessoas que nos podem ajudar do ponto de vista preventivo, para que esse problema nem sequer exista, então aí é muito melhor.

Li que um em cada quatro jogadores pode sofrer de ansiedade ou depressão.
Podemos assumir esses números como razoáveis. Os números não são muito diferentes do que acontece na população de não desportistas, os números são muito semelhantes. Agora, de facto, a profissão de atleta tem algumas especificidades que ainda agravam mais o cenário.

Por exemplo, o facto de se ter uma lesão e de não se ser bem acompanhado do ponto de vista psicológico na recuperação dessa lesão pode provocar problemas de ansiedade, depressão ou até levar ao fim da carreira desportiva porque o atleta não consegue voltar ao nível a que estava antes. Há aqui um conjunto de particularidades que são específicas do desporto de alta competição que podem exacerbar esses problemas de saúde mental.

Muitas vezes esta pressão já nem tem só a ver com o jogo em si, a bola que entra ou não. Há jogadores com lesões recorrentes, há casos de problemas com apostas, há questões familiares, há problemas com negócios extra-campo. São diferentes planos, mas tudo isto perturba.
Claramente, influi na forma como o jogador vê as coisas. E hoje em dia estamos a assistir a outro fenómeno de que não se fala muito, mas que cada vez mais acontece, que é um fenómeno transversal à sociedade – afeta desportistas e não desportistas – que é a questão da concorrência e do ‘ser melhor que o outro’, que nos é muito incutido pela sociedade em que vivemos e que leva a que, depois, os jovens atletas sejam muito perfecionistas, queiram fazer tudo, quer na sua vida académica, quer desportiva, com o máximo perfecionismo.

Isto, se não for bem calibrado, leva-os, a eles próprios, a criarem uma exigência e uma pressão exagerada em cima deles. Nem precisam de ser os pais ou os treinadores a colocarem essa exigência. Muitas vezes já são os próprios atletas a colocarem essa exigência a si próprios. É uma característica de personalidade que acaba por influenciar neste acréscimo de problemas em termos de saúde mental.

Começa a falar-se de greve de jogadores, contra o calendário cada vez mais apertado. Se houvesse um acordo entre FIFA e UEFA com os atletas, acha que isso ia ajudar a baixar a pressão sobre os jogadores?
Os jogadores têm uma série de competições e começam a não ter tempo para encaixar tudo. Estamos a falar de jogadores que, por época, podem, eventualmente, fazer 70/80 jogos e é óbvio que depois se paga uma fatura, obviamente também do ponto de vista físico, mas sobretudo do ponto de vista mental.

O ideal, de facto, seria que houvesse esse entendimento em relação ao número de jogos, que poderia passar por estabelecer um tecto que permitisse que os atletas soubessem, no início da época, que vão jogar um número razoável de jogos que lhes permitisse não pôr em causa a sua saúde, quer física, quer mental. Cada vez se fala mais disso e, às tantas, vai-se mesmo caminhar para esse acordo.

Para além de jogadores e treinadores, também os árbitros sofrem muitas pressões, provavelmente ainda mais. São o habitual bode expiatório das derrotas. Imagino que os árbitros profissionais tenham algum acompanhamento, mas o que acontece com os outros?
Temos muita tendência de olhar para o alto rendimento – e mesmo aí, no que diz respeito ao acompanhamento psicológico, há muitas lacunas –, mas, se olharmos para a outra ponta do espectro, em relação a árbitros e atletas, quando eles começam não têm, na maior parte dos casos, esse acompanhamento e seria uma altura que seria extremamente importante terem. Porque, se houvesse esse acompanhamento, aumentaria a capacidade de a carreira chegar ainda mais longe e ter maior sucesso.

O que acontece, muitas vezes, é que os árbitros ou os atletas que chegam aos níveis profissionais acabam por ir criando estratégias. Vão vendo os outros, vão aprendendo, vão lendo, vão investigando, mas há ainda muito pouco apoio neste processo até chegar ao alto rendimento e era aí que ele era mais necessário.

Certo.
É óbvio que depois, no alto rendimento, se estamos a falar da tomada de decisão de um árbitro num milésimo de segundo ou num milímetro que pode significar a diferença entre o sucesso ou o insucesso, aí também, obviamente, que [o apoio] é importante. Em Portugal temos muita dificuldade em recrutar árbitros por tudo aquilo que envolve o ser árbitro e pela ideia que se criou em relação àquilo que os árbitros passam ao longo da sua carreira.

Pelo menos no futebol, os pais fazem grande pressão sobre os miúdos para terem sucesso. Todos esperam que os filhos sejam “Cristianos Ronaldos” e provavelmente alguns só estão ali para se divertirem.
Sem dúvida, nem todos os pais são assim, mas temos muitos que são e que acabam por colocar uma pressão extra em cima do jovem atleta. Aliás, quando sou procurado por jovens atletas, uma das coisas que digo logo na sessão inicial é que também vou trabalhar com os pais e quero também intervir a esse nível.

Muitas vezes a ansiedade, sobretudo que os jovens atletas revelam, passa muito pelo comportamento dos pais e há até atletas que pedem aos pais para não irem assistir às provas, porque o comportamento dos pais acaba por os colocar ainda mais nervosos do que a situação competitiva já provoca. Há aqui todo um ambiente que é preciso trabalhar.

Há uns anos, a situação de Robert Enke, um guarda-redes alemão que jogou em Benfica e Barcelona, por exemplo, chocou o mundo do futebol. Estava a fazer uma boa carreira, tinha chegado à seleção, aparentemente sem problemas familiares e, afinal, haveria todo um iceberg de problemas que o levou mesmo ao suicídio.
Mais importante do que o sucesso, pelo menos como nós o conceptualizamos na nossa sociedade, que é ter uma vida boa, ter uma profissão, ter dinheiro para não precisar de se preocupar com as contas diariamente, acaba por não ser suficiente para alguns. Faltavam algumas coisas.

Por aquilo que se sabe, ele [Enke] foi sempre escondendo até às pessoas mais próximas, mas, quando se pensava que ele estaria bem, acabou por acontecer. Isto prova-nos que a parte mental é extremamente importante e temos de cuidar dessa parte, nunca esquecendo as questões da saúde mental, e sobretudo não ter medo, nem receio ou vergonha de procurar ajuda quando não estamos a conseguir lidar com as situações sozinhos.

Quais são os sinais de alerta que o atleta revela? A que devem estar atentas as pessoas mais próximas?
Cada caso é um caso, mas há uma coisa que faz sentido, caso consigamos estar atentos, que são as mudanças no comportamento ou no estado de humor. Não são aquelas mudanças que todos temos, em que temos dias em que estamos um bocadinho mais tristes ou mais incomodados com alguma coisa, mas que no dia a seguir já passou. Agora, se estas mudanças de comportamento forem continuadas ao longo do tempo, é um sinal de alerta que nos deve pôr de sobreaviso e com atenção em relação àquilo que está a acontecer com essa pessoa e tentar ajudar da melhor forma que conseguirmos.

Não sei se há dados oficiais, mas dá conta de haver mais baixas entre desportistas à medida que se aproximam grandes competições?
Cada caso é um caso e depende muito do historial e da personalidade de cada atleta, mas há alguns atletas que, à medida que uma prova importante se vai aproximando – uns Jogos Olímpicos, por exemplo – se nota mais isso e, às vezes, procuram ajuda mesmo em cima do acontecimento numa perspetiva mais remediativa: “Tenho aqui um problema e tenho que arranjar uma solução para ele, muito rápida…”

Provavelmente, aí já há pouco a fazer. Não é um penso que se põe numa ferida.

Pois não, é isso. Há estratégias imediatas que podem resultar, mas depois é importante que esse atleta perceba, sobretudo se quer continuar a carreira, que é preciso que esse trabalho seja contínuo ao longo do tempo. Se estivermos num ciclo olímpico, que pense em trabalhar com alguém na área da psicologia de uma forma mais estruturada e mais alargada no tempo de maneira a conseguir ir lidando com essas dificuldades que vão surgindo.

Há, para um leigo como eu, níveis de pressão diferentes. Por exemplo, nuns Jogos Olímpicos, quem foi lá para ganhar tem mais pressão que um atleta estreante que fica satisfeito se melhorar o seu recorde pessoal?
Mais uma vez, depende de caso para caso. Não falando do caso em concreto, até porque eu, no ciclo olímpico anterior, trabalhei com a federação de canoagem, com o Fernando [Pimenta] e outros atletas… mas é evidente que é completamente diferente um atleta ir pela primeira vez ou ir, como foi o caso, com a responsabilidade de ter de ganhar uma medalha e de ele próprio colocar essa responsabilidade. É óbvio que o Fernando é um atleta com muita experiência, já ganhou duas medalhas em Jogos Olímpicos e tem outra maturidade e outra maneira de olhar para as coisas.

Cresci com Rosa Mota e Carlos Lopes, que nos deram grandes alegrias, mas também com o “caso Fernando Mamede”, um atleta que tinha grandes condições, mas que alegadamente falhava várias vezes devido a uma questão mental.
Esse é o caso que quase toda a gente fala na psicologia do desporto em Portugal. O Fernando Mamede era um atleta que tinha condições físicas e fisiológicas fantásticas para a prática do desporto. Toda a gente reconhecia isso, aliás, um dos recordes dele durou quase duas dezenas de anos, mas depois, em termos psicológicos, ele próprio falava sobre isso e reconhecia que precisava de ter tido ajuda na altura.