Papa procura “heróis do futuro” capazes de dialogar e perdoar
04-10-2020 - 11:17
 • Filipe d'Avillez

Francisco diz que as religiões têm um papel fundamental na promoção de uma cultura de fraternidade, mas para isso é preciso terem a liberdade de agir na praça pública e de se fazer ouvir no palco político.

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O Papa Francisco apela ao surgimento de pessoas capazes de quebrar os vícios de um diálogo surdo e da lógica do ressentimento e da vingança, descrevendo-os como “heróis do futuro”.

Na sua nova encíclica, “Fratelli Tutti”, sobre a fraternidade e a amizade social, o Papa dedica os últimos capítulos às dimensões pessoais de uma conversão que permita remediar alguns dos problemas que identifica no mundo, incluindo a incapacidade de dialogar de forma produtiva.

O diálogo, diz Francisco, é um fator essencial para a construção de um mundo mais fraterno. “Não é necessário dizer para que serve o diálogo; é suficiente pensar como seria o mundo sem o diálogo paciente de tantas pessoas generosas, que mantiveram unidas famílias e comunidades”, escreve.

Lamentavelmente, prossegue o Papa, o avanço das redes sociais mudou e envenenou o conceito moderno de diálogo. “Muitas vezes confunde-se o diálogo com algo muito diferente: uma troca febril de opiniões nas redes sociais, muitas vezes pilotada por uma informação mediática nem sempre fiável. Não passam de monólogos que avançam em paralelo, talvez impondo-se à atenção dos outros pelo seu tom alto e agressivo”, diz Francisco, acrescentando que “o pior é que esta linguagem, habitual no contexto mediático duma campanha política, generalizou-se de tal maneira que a usam diariamente todos”.

“Os heróis do futuro serão aqueles que souberem quebrar esta lógica morbosa e, ultrapassando as conveniências pessoais, decidam sustentar respeitosamente uma palavra densa de verdade. Queira Deus que estes heróis se estejam gerando silenciosamente no coração da nossa sociedade.”

Enquanto apela ao diálogo respeitoso, contudo, aceitando que os pontos de vista e a experiência do outro acarretam valor acrescido para todos, o Papa rejeita liminarmente a noção de um relativismo que ponha em causa a existência da verdade, dizendo que “o relativismo não é solução".

"Sob o véu de uma presumível tolerância, acaba por se facilitar que os valores morais sejam interpretados pelos poderosos segundo as conveniências da hora.”

O Papa acredita que é possível e necessário criar uma nova cultura que fortaleça os laços entre os homens, mas sublinha que isso “implica incluir as periferias” e cultivar a amabilidade enquanto virtude.

“O exercício da amabilidade não é um detalhe insignificante nem uma atitude superficial ou burguesa. Dado que pressupõe estima e respeito, quando se torna cultura numa sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e confrontar as ideias. Facilita a busca de consensos e abre caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes.”

Arquitetos e artesãos da paz e do perdão

Só com esta nova cultura é que será possível construir a paz, ultrapassando os conflitos, conclui o Papa, quebrando a ilusão de que esta construção caiba apenas aos agentes oficiais.

“Existe uma ‘arquitetura’ da paz, na qual intervêm as várias instituições da sociedade, cada uma dentro de sua competência, mas há também um ‘artesanato’ da paz que nos envolve a todos.”

Instrumento essencial para este objetivo é a aposta no perdão nas relações interpessoais e o Papa dedica ao assunto do perdão várias páginas da sua encíclica.

“Não se trata de propor um perdão renunciando aos próprios direitos perante um poderoso corrupto, um criminoso ou alguém que degrada a nossa dignidade. Somos chamados a amar a todos, sem exceção, mas amar um opressor não significa consentir que continue a ser tal; nem levá-lo a pensar que é aceitável o que faz. Pelo contrário, amá-lo corretamente é procurar, de várias maneiras, que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e que o desfigura como ser humano.”

“Perdoar não significa permitir que continuem a espezinhar a própria dignidade e a do outro, ou deixar que um criminoso continue a fazer mal. Quem sofre injustiça tem de defender vigorosamente os seus direitos e os da sua família, precisamente porque deve guardar a dignidade que lhes foi dada, uma dignidade que Deus ama. Se um delinquente cometeu um delito contra mim ou contra um ente querido, ninguém me proíbe de exigir justiça e me acautelar para que essa pessoa – ou qualquer outra – não volte a lesar-me nem cause a outros o mesmo dano. Compete-me fazê-lo, e o perdão não só não anula esta necessidade, mas reclama-a” lê-se ainda na encíclica.

Francisco insiste ainda que perdoar não equivale a esquecer e que, muito pelo contrário, é essencial ter memória, evocando tragédias como o genocídio de judeus pelos nazis ou os bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui. “Hoje é fácil cair na tentação de voltar página, dizendo que já passou muito tempo e é preciso olhar para diante. Isso não, por amor de Deus! Sem memória, nunca se avança; não se evolui sem uma memória íntegra e luminosa.”

“O perdão é precisamente o que permite buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem na injustiça do esquecimento”, conclui Francisco.

Com a mesma paixão, o Papa denuncia a guerra, que não é “um fantasma do passado” mas “uma ameaça constante” e afirma que mesmo o conceito de “guerra justa”, que tem raízes no cristianismo que remontam a Santo Agostinho, já não se aplica no mundo moderno e que também é um erro apostar nas teorias do efeito dissuasor das armas de destruição maciça.

Francisco chega mesmo a sugerir que o dinheiro gasto em armamento seja desviado para um “fundo mundial, para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de abandonar os seus países à procura de uma vida mais digna”.

Da mesma forma repete a sua recusa da pena de morte, enquanto alerta também para o perigo do “costume crescente que há, nalguns países, de recorrer a prisões preventivas” e a “reclusões sem julgamento”.

“A rejeição firme da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a dignidade inalienável de todo o ser humano e aceitar que tenha um lugar neste universo. Visto que não o nego ao pior dos criminosos, não o negarei a ninguém, darei a todos a possibilidade de compartilhar comigo este planeta, apesar do que nos possa separar”, considera Francisco.

A religião na praça pública e no palco político

Para poder contribuir para esta mudança de paradigma, o Papa insiste no respeito pelo direito às religiões participarem ativamente na sociedade e até no campo da política.

“Embora a Igreja respeite a autonomia da política, não relega a sua própria missão para a esfera do privado. Pelo contrário, não pode nem deve ficar à margem na construção de um mundo melhor nem deixar de ‘despertar as forças espirituais’ que possam fecundar toda a vida social. É verdade que os ministros da religião não devem fazer política partidária, própria dos leigos, mas mesmo eles não podem renunciar à dimensão política da existência que implica uma atenção constante ao bem comum e a preocupação pelo desenvolvimento humano integral”, escreve, defendendo que para isso é fundamental que os estados respeitem o direito humano fundamental da Liberdade Religiosa.

Aos crentes Francisco pede que tenham cuidados redobrados para que os seus próprios textos e tradições não sejam manipulados para “alimentar formas de desprezo, ódio, xenofobia” e “negação do outro”.

Estes apelos a uma nova cultura, sublinhando o diálogo e a capacidade de perdão, complementa a primeira parte da encíclica do Papa, em que faz um resumo dos principais problemas da sociedade atual e lança propostas para uma nova abordagem da política e das relações entre os estados para construir um mundo mais fraterno.