Portugal tem mesmo de arder?
08-08-2016 - 17:46

Nas zonas florestais praticamente desertas de um Portugal cada dia mais pobre, parece bastar um raio de sol para que as matas por limpar acabem transformadas em infernos onde os mais desprotegidos e os mais idosos são vítimas particularmente vulneráveis.

Não tem de ser assim. Ou tem? Afinal, o que nos foi vendido como um notório progresso de uma nova estratégia de combate aos fogos (atacar massivamente o seu começo, utilizando uma flexibilização acrescida dos meios aéreos disponíveis) e que todos saudámos nos últimos anos não terá passado de uma pequena série de anos excepcionalmente chuvosos.

Regressados o sol e a seca, a cena ameaça repetir-se e, ao primeiro fim-de-semana de calor intenso, o país, de Norte a Sul, parece ter pegado fogo. Por ironia, repetem-se também os velhos bodes expiatórios: bombeiros e protecção civil. Ironicamente, aqueles que, apesar de tudo, salvam vidas e bens. Uns criticam-se porque não conseguem dar conta do recado (embora na maioria dos casos seja óbvia o seu estado de exaustão) e outros porque ora não planearam a tempo, ora planearam mal, ora desmobilizaram cedo de mais.

Pelo meio da confusão que sempre se gera nestes casos, inocentam-se por igual as vítimas: as que, além de terem cumprido com os respectivos deveres de limpeza das matas circundantes e prevenção dos respectivos haveres, sofreram por incúria dos respectivos vizinhos e os que acabam vítimas da sua própria negligência e irresponsabilidade, colocando em risco desnecessário, além dos haveres próprios, também os de vizinhos e conterrâneos. Tudo se dilui numa emotividade acrítica.

Os próprios meios de comunicação social acabam vítimas da dinâmica clássica da voragem dos fogos. Sem temas alternativos e presos ao relato da realidade, vão dando conta do alargar da fogueira. São por demais conhecidos os efeitos miméticos que o seu relato tem sobre os pirómanos, pelo que acabam por ser causa indirecta da propagação do crime. Não por acaso, mais de um terço dos fogos deflagraram, nos últimos dias, em plena noite, mostrando até que ponto a origem criminosa ganha dimensão.

Se nos colocarmos na pele dos emigrantes de segunda e terceira geração, é fácil imaginar a recordação que levarão ano após ano para os países de acolhimento do país de origem dos pais e avós (quantos anos ouvimos o nome da Pampilhosa ou de Águeda no historial dos fogos recentes?) e, se nos colocarmos na pele dos turistas, não deixaremos de pensar o que nos aconteceria se nos fosse dado presenciar o caos como o da região Norte, onde até o plano de emergência teve de ser accionado pelos fogos de Verão.

A desertificação do interior e o envelhecimento galopante do país interior explica uma boa parte da dimensão do desastre e a recente emigração de milhares de jovens explicará outro tanto nas poucas zonas mais densamente urbanizadas.

Nas zonas florestais praticamente desertas de um Portugal cada dia mais pobre, parece bastar um raio de sol para que as matas por limpar acabem transformadas em infernos onde os mais desprotegidos e os mais idosos são vítimas particularmente vulneráveis.

Mas há, para além disso, muitas coisas que ficam por explicar: conhecido o perigo e perante a evidência da falta de braços para a limpeza privada porque não previnem as autarquias com limpa-fogos o que os privados não podem realizar?

As imagens são claras sobre o estado de incúria e abandono que serve na maioria dos casos de pasto às chamas. Como é que nem os parques e matas estatais parecem estar ao abrigo da falta de estratégia quer na prevenção quer na reflorestação pós incêndios. E uma adequada reflorestação é tanto ou mais importante em matéria de combate e prevenção quanto a limpeza das matas.

Enquanto continuarmos a pensar que o combate aos fogos é quase exclusivamente matéria da competência do Ministério da Administração Interna não nos veremos livres do flagelo.

Enquanto desconhecermos que esta é uma matéria multiministerial onde Educação, Cultura, Defesa e Agricultura desempenham um papel tão ou mais importante do que o MAI continuaremos dependentes da Meteorologia para saber se cada ano é ano de sucesso ou de fracasso no combate aos fogos.

Isto é claro, já para não falar da visão economicista que legitima que se “poupe” na contratação e nas horas extraordinárias dos vigilantes da floresta o que se gasta depois na mobilização dos meios aéreos de combate aos fogos.

Esperemos ao menos que, passado o Verão, não se espere de novo por Junho do próximo ano para retirar as lições de mais esta revoada de incêndios. Outubro é uma boa ocasião para pensar nos custos/benefícios de uma estratégia global de combate aos fogos na próxima década. Não deve ser aqui que as recomendações austeritárias se devem aplicar.