Curdistão Iraquiano. Um novo país no horizonte?
27-06-2017 - 17:20
 • Filipe d'Avillez

Durante gerações sofreram às mãos de sucessivos regimes iraquianos. Agora os curdos dizem que chegou a hora de serem independentes de facto. Mas o caminho não será fácil e pode não ser pacífico.

E depois de Mossul?


É comum ouvir-se falar em Curdistão, mas na verdade, actualmente, não existe um único Curdistão.

O território dos curdos, uma das maiores nações do mundo sem pátria, divide-se entre quatro Estados. A Síria e o Irão têm pequenas parcelas, a Turquia tem a fatia do leão e a maior população curda e o Iraque tem o resto.

“Todos os curdos sonham com a independência e esse tem sido o lema dos movimentos curdos nestes quatro países, mas a parte iraquiana é a que tem registado maiores avanços nesse sentido”, diz Mohammedali Taha, um jovem deputado do KDP, o partido que domina a política do Curdistão iraquiano.

Embora seja oficialmente parte do Iraque, o Curdistão começou a ganhar autonomia depois da primeira Guerra do Golfo, quando os Estados Unidos e seus aliados impuseram uma interdição aérea que, na prática, evitou a continuação das atrocidades levadas a cabo pelo exército contra os curdos.

Em 2003, quando Saddam foi deposto, o Curdistão fortaleceu a sua autonomia e ganhou o estatuto de Estado federado no contexto de um Iraque unitário. Desde o início, porém, que as relações com Bagdad têm sido tensas.

“Quando os Estados Unidos derrubaram Saddam, os curdos optaram por colaborar na democratização do Iraque. Ajudámos a redigir a constituição, que incluía o estatuto de governo regional num Iraque federal. Mas era suposto recebermos também direitos. Infelizmente tivemos problemas desde início. A nossa quota do orçamento seria de 17% do total dos rendimentos do Iraque, mas nunca chegou. Cortaram os ordenados aos nossos funcionários públicos. Ameaçaram-nos. Somos uma região rica em petróleo, mas estávamos a enviar tudo através do Iraque, sem receber nada em troca”, afirma Mohammedali Taha.

A crise do Estado Islâmico transformou ainda mais a situação. As forças armadas iraquianas dissolveram-se perante a ameaça, deixando o Curdistão e os seus militares peshmerga – aqueles que enfrentam a morte – sozinhos para lidar com a ameaça. O Curdistão ganhou credibilidade aos olhos internacionais e mesmo as grandes potências compreenderam que era um aliado militar mais fiável na luta contra o Estado Islâmico do que Bagdad.

Os curdos têm ainda a vantagem de terem resistido bastante bem à infiltração do extremismo islâmico e de valorizarem mais a identidade étnica do que a filiação religiosa, ao contrário do que se passa nas áreas circundantes. “No Iraque temos três principais entidades: os sunitas, os xiitas e os curdos. Os curdos são curdos. Temos curdos xiitas e sunitas, cristãos, yazidis, muitas ideologias e religiões diferentes, mas são considerados curdos. Já com os árabes a diferença está entre serem sunitas ou xiitas, a denominação é que conta.”

Tempo de avançar sozinhos?

Para os curdos, diz Mohammedali Taha, chegou a hora de avançar sozinhos como nação independente. “Como parte do Iraque nunca vimos respeitados os nossos direitos. Tudo tem sido feito contra nós por sucessivos governos: massacres, genocídios, valas comuns, armas químicas. Parece-nos que para evitar mais atrocidades, derramamento de sangue e conflitos, é preciso tomarmos outra posição.”

Há anos que se fala num referendo para a independência do Curdistão, mas em Abril o KDP e o PUK, o segundo partido, chegaram a um acordo para realizar a consulta popular já para o dia 25 de Setembro.

A irmã Irene Guia, uma freira portuguesa que está em missão no Curdistão iraquiano, não tem dúvidas que “99,9% querem a independência. O Curdistão iraquiano é a única parte do Curdistão que pode hastear a sua própria bandeira e esse feito é tão significativo que existe um dia para o celebrar, em que praticamente todos os carros, todas as lojas, penduram orgulhosamente a bandeira comum aos quatro países onde esta região se localiza.”

Mas o caminho para a independência não será fácil e paradoxalmente um dos principais opositores é a maior organização curda da actualidade, o PKK, que actua sobretudo na Turquia, onde é considerada uma organização terrorista.

“A primeira bala disparada contra o Governo do Curdistão, em 1993, veio do PKK. Esse conflito, activo ou latente, mantém-se até hoje”, explica Mohammedali Taha. Já a Turquia, um tanto ou quanto surpreendentemente, tem apoiado o Governo Regional do Curdistão, havendo agora fortes ligações diplomáticas e comerciais.

Quem também não deve aceitar de ânimo leve a saída do Curdistão Iraquiano é o regime de Bagdad, sobretudo se Erbil – capital do Estado – insistir em manter a posse das chamadas “áreas disputadas” pelas duas partes. Essas áreas disputadas são precisamente aquelas em que vivem as principais minorias étnicas e religiosas da região, incluindo cristãos, yazidis, turcómanos e shabaques, entre outros. A cidade de Kirkuk, reivindicada pelos curdos mas povoada em grande parte por árabes e turcómanos é um foco de tensões particularmente grave.

Ao longo dos últimos anos os curdos aproveitaram-se do combate contra o Estado Islâmico para controlar a maioria destas áreas, mas com o grupo terrorista finalmente expulso de Mossul é possível que as forças armadas leais a Bagdad, agora mais bem organizadas, treinadas e motivadas, possam querer desafiar a hegemonia curda no local.

É possível que haja um conflito? Mohammedali responde com franqueza. “Espero que não, mas é muito provável.”

Se tal acontecer são poucos os curdos que não têm experiência militar, incluindo mulheres. “As mulheres curdas também são combatentes, lutam lado-a-lado com os homens. Isso não é nada de novo para nós, é assim há séculos. São melhores combatentes, em alguns casos, que os homens. Não há diferenças.”

Os Estados Unidos e a Turquia estão a par das dificuldades e gostariam de evitar o conflito. Recentemente, segundo noticiou a Reuters, o responsável da Agência de Informação da Defesa explicou ao senado que a independência do Curdistão “não é uma questão de ‘se’ mas de ‘quando’. E vai complicar muito a situação, a não ser que haja um acordo com Bagdad”.

“Caso não se chegue a uma solução política”, diz o tenente general Vincent Stewart, “acabará por resultar num conflito entre todas as partes para resolver a questão e o regresso a um estado de guerra civil no Iraque”.

No início de Junho o Governo americano pediu mesmo aos curdos para não avançarem com o referendo em Setembro, como planeado, mas Erbil respondeu que não haverá qualquer recuo.

Minorias preocupadas

Se Erbil avançar para a independência resta saber o que acontece às comunidades minoritárias que vivem nas zonas disputadas. Representantes yazidis e cristãos com quem a Renascença falou mostram-se muito cépticos quanto ao futuro, exigindo a criação de uma região autónoma na qual se possam governar a si mesmos, seja dentro do Iraque, dentro do Curdistão, ou com relação privilegiada com ambos.

Os curdos, por sua vez, dizem-se dispostos a respeitar a autonomia destas minorias, mas Mohammedali Taha não tem dúvidas de que elas optarão pela segurança que Erbil oferece. “A principal preocupação dos povos nessa região é a segurança. Não só para árabes, mas para curdos, cristãos, turcómanos e outras etnias. E a maior pate deles, incluindo os árabes e talvez sobretudo os árabes, estão mais satisfeitos com a segurança fornecida pelo Governo Regional do Curdistão do que pela segurança fornecida por Bagdad”. Apesar disso, o deputado reconhece que existe um perigo real de perseguição aos árabes que permaneçam em território controlado pelos curdos no caso de a situação se agravar.

O futuro dirá até que ponto essa segurança se manterá caso o Curdistão avance mesmo para a independência, tornando-se assim o primeiro estado Curdo no mundo.