“Em fevereiro, os estrangeiros saíram de Wuhan. Eu decidi ficar”
26-01-2021 - 07:00
 • João Pedrosa*

João Pedrosa passou o Natal de 2019 em Portugal. Quando regressou a Wuhan, em janeiro de 2020, a cidade já estava a braços com uma estranha pandemia. Passou meses confinado em casa e recusou ser repatriado. Agora assiste de longe ao degradar da situação na sua terra Natal e sonha com o dia em que volta a ver o Tejo de perto.

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Escrevo este “postal” junto às margens do “rio que corre pela minha aldeia” (**)

A “minha aldeia” é Wuhan, uma megacidade com mais de 11 milhões de habitantes, capital da província Chinesa de Hubei, e o rio que a percorre é o Yangtzé, o maior da Ásia.

Tenho por hábito, de tempos a tempos, atravessar a cidade e vir até aqui. Gosto de desfrutar da visão das águas tranquilas e deixar a minha mente “navegar”.

Sossega-me a alma! Mato saudades? Talvez um pouco…

Não posso deixar de notar que existe agora muito mais gente a passear e a usufruir da calma envolvente. Recordo-me em meados de abril do ano passado, imediatamente após o longo confinamento que foi imposto a Wuhan, de o cenário ser radicalmente oposto e que podia contar pelos dedos de uma mão os que conseguia avistar.

Reparo também que a maioria daqueles que por aqui deambulam ainda continuam a utilizar máscara facial. Apesar de em espaços abertos não ser exigido o seu uso e não haver registo de qualquer caso desde meados de maio do ano passado, as gentes de Wuhan parecem não a querer largar.

Os forasteiros que visitam a cidade estranham a utilização tão generalizada de tal artefacto.

Talvez a justificação se prenda com o facto de a população local ter vivido o drama do surto de Covid-19 de uma forma intensa, longa e particularmente dura e devastadora.

Em janeiro de 2020 começa a ser noticiado que, desde o mês anterior, havia doentes a entrar nos hospitais da cidade, vítimas de um novo tipo de pneumonia. Vem-se a reconhecer e confirmar que se trata de um novo coronavírus, especialmente perigoso, que se dissemina fácil e rapidamente.

Estava-se na véspera de um Ano Novo Chines, em que a tradição manda que as famílias se reúnam e se visite as terras dos ancestrais. São muitos e muitos os milhões de chineses que se movimentam em tal período festivo.

Wuhan é conhecida pela sua centralidade em termos de vias de comunicação de transito, quer seja terrestre, fluvial ou aéreo – uma cidade de milhões de migrantes prontos a viajar e a “promover” a propagação do terrível vírus. Porventura terão sido estas as razoes para que a 23 de janeiro lhe ter sido imposto um gigantesco bloqueio, até então nunca visto.

Portugal, a exemplo de outros países, a 2 de fevereiro efetua um voo de resgate dos seus compatriotas (cerca de duas dezenas) presentes na região. Eu tomei da decisão de ficar. Seguiram-se cerca de 10 semanas de quarentena.

Wuhan transformou-se numa cidade estranhamente calma e praticamente deserta – tudo suspenso ou fechado: transportes públicos, fábricas, lojas, restaurantes, escolas…

Ainda no início de fevereiro assisti ao encerramento dos portões da comunidade onde resido. Também em fevereiro, a porta do meu prédio foi trancada.

Fiquei confinado ao meu apartamento, apenas saindo muito esporadicamente para recolher os pacotes com os bens básicos de subsistência, que me eram entregues à entrada do edifício pelos voluntários da comunidade.

Lá fora, nas cerca de cinco dezenas de hospitais existentes, travava-se uma batalha de vida e de morte.

Há que ser paciente e aguardar.

Tive de esperar até final de Marco para poder voltar à rua.

No dia 28 desse mês, munido dos devidos certificados de autorização, consegui sair da minha comunidade e regressar ao meu trabalho.

As ruas e avenidas de Wuhan continuavam ainda despovoadas, pois o bloqueio ainda se mantinha e, eram poucos os que estavam devidamente liberados a deixar as suas habitações.

O verdadeiro desbloqueio da cidade só aconteceu a 8 de abril, passados 76 dias desde o seu início.

Procurou-se retomar uma certa “normalidade”, mas as regras impostas fizeram sentir que nada era igual – uso obrigatório de máscara, distanciamento social, controlos de temperatura corporal em todo lado, testes acido nucleico, códigos de saúde, rastreios nas entradas e saídas de edifícios públicos e transportes, vida on-line. A título de exemplo, as escolas que tinham fechado as suas portas em janeiro, só voltaram a abrir em setembro.

Apesar de já ter passado bastante tempo, muitas destas regras continuam a fazer parte do quotidiano da cidade.

O longo bloqueio e as restritas medidas parecem ter-se revelado eficazes e levado de vencida a árdua batalha que Wuhan travou com a diabólica epidemia.

Mas a guerra contra o coronavírus não terminou, especialmente agora que se avizinha o Novo Ano Chinês.

Também o recente surgimento de diversos casos na China faz com que o medo regresse. Pede-se que se evite viajar e foram decretadas estritas regras sanitárias e de circulação para aqueles que o pretendam fazer no período festivo.

Volto a encher o meu horizonte com o sereno leito do Yangtzé. Não quero estar “só ao pé dele”. Penso “no que há para além…” (**)

Mantenho a esperança e o otimismo que o mundo irá também ter os seus rios plenos de águas pacíficas e que dias de “fortuna” virão.

Não quero acreditar que é nostalgia e sei que um destes dias voltarei a estar, com quem amo, apenas junto ao meu/nosso Tejo sem “pensar em nada” (**).


*Joao Pedrosa é diretor técnico de uma empresa alemã de tecnologia industrial. Vive e trabalha em Wuhan desde fevereiro de 2019. Toda a sua família está em Portugal, onde esteve pela última vez a passar o Natal de 2019. Regressou a Wuhan em janeiro de 2020, pouco antes de ter sido decretado o confinamento total da cidade e desde essa altura que não voltou a sair da China.

(**) – O rio da “minha” aldeia - Alberto Caeiro. In: Fernando Pessoa