O roubo das almas
13-07-2022 - 07:35

É um título de um livro de Valentim Alexandre sobre a inserção internacional do Estado Novo nos tempos da Guerra Civil de Espanha. Mas lembrei-me da expressão, e invoco-a, a propósito do caso mediático da família Mesquita Guimarães.

Durante a Guerra Civil de Espanha, após a tomada do País Basco pelas forças nacionalistas de Franco, a resistência republicana, com auxílio britânico e soviético, começou a retirar crianças e jovens das cidades e aldeias daquela região ocupada, e a enviá-las para Inglaterra e para a URSS, para ali serem educadas, longe da influência clérigo-fascizante (assim se denunciava) do nascente franquismo. Em Portugal, a imprensa salazarista, alinhada com a causa do general Franco, apressou-se a denunciar essa debandada, referindo-se-lhe com a expressão “roubo das almas” – entenda-se, as “almas” infantis estavam a ser “roubadas” à cruzada moralizadora franquista, e iriam ser educadas no credo da democracia ou no credo do comunismo, dois desvios que o autoritarismo salazarista condenava como identicamente maus.

«O roubo das almas» é um título de um livro de Valentim Alexandre sobre a inserção internacional do Estado Novo nos tempos da Guerra Civil de Espanha. Mas não é sobre isso que versa o meu argumento. Lembrei-me da expressão, e invoco-a, a propósito do caso mediático da família Mesquita Guimarães.

O enredo é conhecido. Os pais de dois jovens, alunos de mérito de uma escola pública de Famalicão, não querem que os filhos frequentem a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento. A dita disciplina, que, a existir, deveria ser facultativa (como o é a Educação Moral e Religiosa Católica), parece ser uma “salada mista” das modas fraturantes das esquerdas, com temas que vão da educação ambiental e democrática à literacia financeira e segurança rodoviária, passando pela interculturalidade, igualdade de género e sexualidade. A direção da escola percebeu e aceitou a reserva e a decisão dos pais; mas o Secretário de Estado João Costa, hoje Ministro da Educação, interveio para abrir um processo contra os pais. E, agora, foi o Ministério Público que, com uma argumentação delirante e violentadora da esfera privada da família, veio decretar que a vontade dos pais nada vale, que a vontade dos filhos, sintonizados com os pais, nada vale, e que os jovens, bons alunos, gentis e sociáveis devem ser retirados da “situação de perigo existencial em que vivem” e entregues à tutela da escola durante o período em que a frequentam – para, claro, na escola se sujeitarem, queiram ou não, a barrela ideológica que colide com os valores (repito, valores, e não matérias de conhecimento) que os pais, livre e responsavelmente, lhes transmitem em casa.

O caso é alarmante pelo que demonstra de prepotência e de despotismo. Argumenta-se que a disciplina é obrigatória e que os pais não podem decidir o currículo dos filhos. Pois deveria ser facultativa, pela exata natureza dos temas que aborda, e que melhor seriam dados noutras disciplinas (os que o possam ser), ou deixados à liberdade educativa da família (os que não devem ser doutrina impositiva). Alguns pais querem veicular aos seus filhos a ideologia de género: é a sua opção. Outros veiculam outras visões sobre os indivíduos, o sexo e a família: é a opção querida pelos Mesquita Guimarães. O Ministério Público – portanto, o Estado português – considera que estes pais ameaçam o “equilíbrio emocional” dos dois jovens, embora toda a gente os ache, justamente, muito equilibrados pela educação recebida em casa.

O Ministério Público atropela, assim, grosseiramente, o art.º 43.º da Constituição da República Portuguesa, onde se lê que “o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”. Em suma, o Ministério Público parece esquecer-se que vivemos em democracia e, pior, parece apostado em cometer, sob fachada democrática, um outro “roubo das almas”.