Não Mais Seremos os Mesmos
30-03-2020 - 07:20
 • João de Melo*

O que mais é preciso, nos dias de agora, é pormos os olhos nos olhos dos homens: ver se ganham consciência da fragilidade humana perante o poder e as fúrias da Natureza mãe.

Depois de tudo isto, não mais seremos os mesmos. Pertencemos à terra dos nossos mortos. Deus pode estar por cima das nossas cabeças, mas é cá em baixo, na Terra, que as coisas se decidem. Não se trata apenas de fé, mas sobretudo de vontade. Queremos passar a grande página do mundo sobre este tempo de perdição; voltar aos hábitos e às alegrias que nos trouxeram até aqui: as ruas, o trabalho e os dias de que falou o grego Hesíodo, e os nossos lugares comuns, como os beijos, os abraços das nossas crianças e os apertos de mão entre vizinhos e conhecidos.

É com a vontade e com o desejo que sonhamos a vida, a terra magnífica dos homens e a salvação do planeta. Tomai como exemplo os canais de Veneza: havia séculos que eles não deslizavam por entre as casas, límpidos e inocentes como os aquários. Agora as águas da cidade condenada são transparentes de azul e levam consigo peixes de todas as cores que entram por Veneza dentro e vêm conhecer os homens.

Olhai os mapas comparativos dos céus das cidades europeias – Lisboa, Madrid, Paris, Roma e Berlim. Onde antes pairavam as nuvens venenosas da maldita civilização poluída, são agora quase inocentes os fios desses fumos que vêm lá do alto para dentro dos nossos brônquios. Vede como rejubila a mãe Natureza ao sol primaveril que bate sobre a relva. Mas o que mais é preciso, nos dias de agora, é pormos os olhos nos olhos dos homens: ver se ganham consciência da fragilidade humana perante o poder e as fúrias da Natureza mãe.

Os mares, os gelos polares, os ares e os ventos não suportarão por mais tempo as nossas doenças. Não sabem que doenças? O plástico, os resíduos químicos, o lixo tóxico, a morte que vai sobrando dos vossos ensaios atómicos. E as guerras. Nada neste mundo ilustra melhor a barbárie humana do que elas. As guerras, as guerras. O homem deixa de ser um homem quando se arma. O guerreiro armado nega ao outro, ao da sua condição, a dignidade da vítima e o perdão do vencido.

Não mais seremos os mesmos, repito. Temos o pensamento nos nossos doentes e a razão nos nossos mortos. Façamos a grande pausa universal do silêncio. Este é o tempo em que o horizonte está dentro, e não nos olhos dos homens. Nunca estivemos tão perto da tragédia e do suicídio universal. Paremos o movimento e os passos que nos levam para o abismo. Renasçam dentro e fora de nós tempos limpos, céus azuis por cima de todas as casas, a paz de cada dia num mundo inicial que seja de todos; e que não haja entre nós brancos, pretos, amarelos e vermelhos, mas apenas humanos.

Reparem que não vos peço a Terra, nem a Pangea: a união, num só, de todos os continentes e ilhas. Bastam-me os desejos utópicos – e que se realizem pela mão daquele que tudo vicia e tudo destrói: o homem predador do homem, destruidor do planeta, ladrão dos direitos alheios e da vida que nos foi dada numa noite de amor na cama dos nossos Pais. Benditos sejam eles para sempre.

(Lisboa, 27 de Março de 2020)

*João de Melo recebeu, em 2019, a Medalha de Mérito Cultural do Ministério da Cultura. Nascido na ilha açoriana de São Miguel, é autor da obra "Gente Feliz com Lágrimas", que publicou em 1988. Durante nove anos, entre 2001 e 2010, foi conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Espanha. Em 2003, criou, em Madrid, a "Mostra Portuguesa". Autor de contos, romances e poesia, João de Melo frequentou o Seminário dos Dominicanos, em jovem. Na década de 1970, cumpriu serviço militar em Angola em zonas de guerra. Entre outras distinções, já foi condecorado com o grau de Cavaleiro da Ordem de Santiago de Espada, o grau de Comendador da Ordem do Infante Dom Henrique e recebeu a Medalha de Mérito Cívico da Assembleia Regional dos Açores.