​Brexit: “Eles estão loucos” e outros enganos
30-06-2016 - 07:04

Uma Europa burocratizada, com tiques autoritários e que – nas palavras recentes da Srª Merkel – não é social é, naturalmente, vista com olhos desconfiados.

Na sequência da decisão histórica do Reino Unido sobre a permanência na União Europeia depressa vimos surgir – sobretudo entre políticos e comentadores nos média – uma série de explicações simplistas que, por força de repetição, se foram gradualmente espalhando. Elas andam, genericamente, por este tipo de territórios: “afinal enganaram-se, coitados”, ou “afinal, foram enganados”, ou “os líderes dos dois principais partidos não fizeram o suficiente”, ou ainda “o Cameron não devia ter convocado referendo nenhum; estas coisas são muito complexas e as pessoas não as entendem”.

São, percebe-se bem, na melhor das hipóteses, uma espécie de chá calmante que insistimos em tomar para aliviar a dor de cabeça que temos pela frente mas são também indicações muito preocupantes sobre a forma como, na Europa, nos teremos habituado a resolver situações difíceis – encontra-se uma explicação básica, fazem-se uma ou duas alterações cosméticas e segue-se em frente até as coisas funcionarem como queremos (foi assim com a Irlanda, com a Dinamarca e até com a ‘aprovação’ sem discussão pública do malfadado Tratado de Lisboa). Ora, tanto o Brexit como este tipo de postura que tende a menorizar o papel e o lugar dos mecanismos nacionais de legitimação democrática dos regimes são faces de uma mesma moeda e precisam de ser bem entendidos em toda a sua complexidade.

Como escrevia há dias John Pilger, o jornalista australiano que se tornou famoso para nós com os trabalhos sobre Timor-Leste, 63% das crianças pobres no Reino Unido vive em famílias onde há um só rendimento e mais de 600 mil residentes da segunda maior cidade do país, Manchester, “experienciam os efeitos de pobreza extrema”; para estas e muitas outras pessoas – independentemente do seu alinhamento político nacional – a situação em que vivem é de ruptura e o desinvestimento gradual, nos últimos anos, em serviços públicos que garantam uma rede mínima de apoio social agravou uma sensação de completo abandono. Uma Europa burocratizada, com tiques autoritários e que – nas palavras recentes da Srª Merkel – não é social é, naturalmente, vista com olhos desconfiados. Sejam quais forem as repercussões económicas e financeiras da opção contrária. Sejam quais forem as promessas ou ameaças de última hora (e elas foram tantas nos últimos dias antes da votação). Até porque, para muitos deles, o ‘mau’ já acontece todos os dias.


Por tudo isto, o Brexit precisa de ser encarado não apenas como um problema britânico mas, sobretudo, como um problema Europeu. A União não pode continuar a entender-se como uma entidade que se impõe aos Estados de forma discricionária (e a questão das eventuais sanções a Portugal é um bom exemplo disso mesmo), que impõe soluções em nome de interesses pouco claros (veja-se o Banif), que impõe uma agonia austeritária sem qualquer consideração pela vida concreta dos cidadãos e para benefício preferencial de uma grande economia. Essa Europa, que se afastou dos ideais solidários da fundação, precisa de sair de cena com urgência. O Brexit não foi um acidente meio tresloucado. Foi, talvez, o último sinal sério de aviso antes da grande tempestade.