O cardeal português D. Manuel Monteiro de Castro teve de enfrentar, ao longo de meio século ao serviço da diplomacia do Vaticano, considerada “a melhor diplomacia do mundo”, situações difíceis e perigosas em muitos dos países onde esteve destacado. Apanhou, por exemplo, a guerra no Vietname, uma revolta militar em Trinidad e Tobago e a guerrilha em El Salvador.
Muitos desses episódios são contados no livro “O Núncio português”, que a jornalista Rosário Lira quis escrever para memória futura. “Em 2010, numa entrevista que lhe fiz, apercebi-me de que já estava a ficar um pouco esquecido, mas tinha uma experiência de vida tão rica que achei que estes testemunhos e esta vivência tinham que ficar para sempre. Senti que Portugal tinha que conhecer este homem”, diz a autora à Renascença.
Para escrever a obra, autora e biografado tiveram de se encontrar várias vezes, tanto em Roma como em Guimarães, quando o cardeal regressava à terra-natal, Santa Eufémia de Prazins. E Rosário Lira teve também de fazer muita pesquisa. “Consultei muitos jornais da época, porque estamos a falar de um período muito alargado, desde os anos 60, com o início da carreira diplomática dele, quando não havia internet. Foi preciso falar com pessoas que o conheceram e trabalharam com ele e, depois, tentar conjugar aquilo que eram os fragmentos e as lembranças dele com a história dos próprios países”, explica.
Ao longo desse trabalho, a curiosidade jornalística foi dando lugar à surpresa: “Apesar de acompanhar com alguma regularidade os assuntos relacionados com o Vaticano e a ação da Igreja no exterior, a verdade é que me surpreendi com a riqueza da vida deste homem, deste português que é cardeal, sobretudo pelo tipo de diplomacia que ele fez."
Rosário Lira conta que D. Manuel “sempre seguiu as indicações que o Vaticano lhe dava”, mas, como esteve “em países muito complicados, sob o ponto de vista político, mas também sob o ponto de vista do relacionamento da Igreja com os respetivos governos”, a sua ação foi, em muitas ocasiões “uma ação intrusiva".
"Não se limitou a ficar a ver o que se passava, teve um papel ativo nos acontecimentos. Acho que isso é o que faz também a diferença e o que torna esta história de vida interessante."
Uma vida que “dava um filme”
Natural de Santa Eufémia de Prazins, em Guimarães, onde nasceu a 29 de março de 1938, D. Manuel Monteiro de Castro foi ordenado padre em 1961. Doutorou-se em Direito Canónico na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, em 1967, ano em que entrou no serviço diplomático da Santa Sé. Foi ordenado bispo em 1985 e criado cardeal pelo Papa Bento XVI, em 2012, quando se tornou Penitenciário-mor do Supremo Tribunal da Penitenciária Apostólica.
Foi Núncio Apostólico em Espanha e na África do Sul, por exemplo, mas a sua carreira diplomática passou por muitos outros países: 12 no total, que lhe exigiram coragem nas decisões.
“A primeira situação que ele tem, ainda não Núncio, foi na Guatemala, onde a guerrilha raptou o embaixador alemão e exigiu uma troca de prisioneiros. Como essa troca não se fez, assassinaram o embaixador. Foi D. Manuel Monteiro de Castro que recebeu o telefonema na Nunciatura a dizer 'venham buscar o corpo do embaixador’. Depois, o Núncio foi expulso e D. Manuel acabou por assumir a continuidade dessa liderança até nova colocação”, conta Rosário Lira.
Depois disso, houve muitas outras situações perigosas. “O primeiro posto dele como Núncio foi nas Antilhas, onde viveu um golpe militar em que estiveram quatro dias sem luz nem água, na Nunciatura. Esteve no Vietname, em guerra, no período 1972/75, com o cardeal Van Thuân, que acabou por ser preso, ao tentar trazer os católicos vietnamitas que estavam no Camboja para o Vietname. Em El Salvador, com a guerrilha, teve um papel preponderante através da ação que tinha na rádio e também junto do próprio presidente”, lembra a autora, sublinhando como esse papel foi reconhecido no próprio país: “Ele foi o único Núncio que teve o Presidente da República a despedir-se dele no aeroporto e há, até, uma imagem que foi publicada nos jornais, em que ele aparece ao lado de uma pomba, porque era considerado o homem da paz em El Salvador”.
Esta vida que “dava um filme” fica, para já, perpetuada num livro, que, para a autora, tem outra mais-valia: “A história dele, no fundo, atravessa a história dos próprios países. Portanto, mais do que a história de vida de D. Manuel, no livro temos também fragmentos e detalhes de cada um dos países onde ele esteve”, explica Rosário Lira, que diz ainda ter descoberto um homem de grande profundidade espiritual: “Ele diz que o que mais lhe custa é não ter tido tempo suficiente para rezar."
Prefácio de Jorge Sampaio, "uma pessoa que preza muito a liberdade religiosa"
No livro, há “muitas transcrições de algumas coisas escritas por ele sobre a mãe e a avó, por exemplo, que foram as figuras que o acompanharam religiosamente nos primeiros tempos. É um misto de uma espiritualidade muito profunda, de alguém que sempre quis ser padre, e um bom padre, conjugado com o diplomata que representou a Santa Sé em diferentes países”. A jornalista diz que “gostaria de ter ido mais longe, mas está aqui o essencial do que foi a sua vida”.
Editado pela Lucerna, o livro “O Núncio Português - Biografia do Cardeal Monteiro de Castro” foi publicado em 2018 pelos seus 80 anos de vida e tem prefácio de Jorge Sampaio. “Acedeu em fazê-lo. Bem sabemos que não é, propriamente, uma pessoa ligada à Igreja católica, mas é uma pessoa que preza muito a liberdade religiosa e tem tido aí uma ação preponderante. E acho que o livro fica bastante enriquecido com este prefácio”, sublinha a autora.
Depois de Guimarães e Lisboa, a obra vai ser apresentada esta quarta-feira na Igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma, pelo embaixador de Portugal junto da Santa Sé, António Almeida Lima, e na presença do cardeal Monteiro de Castro e da sua família.