Portugal tem “um número diminuto” de jihadistas e familiares que aderiram ao autoproclamado Estado Islâmico (Daesh). É o que começa por referir à Renascença o presidente do Observatório da Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), quando questionado sobre o que é que o nosso país deve fazer agora que o grupo terrorista foi derrotado - e que muitos europeus que se juntaram às suas fileiras pretendem regressar aos países-natal.
O número exato de portugueses não é público e, para António Nunes, Portugal só deve recebê-los se houver um acordo de “entrega partilhada” com os outros Estados-membros da União Europeia.
“No passado, Portugal aceitou, dentro de uma colaboração com vários países do mundo, receber jihadistas extremistas e tem-nos cá", explica o especialista. "A questão que agora se coloca é ao nível dos direitos humanos. Se eles reivindicarem que têm nacionalidade e se se confirmar que têm nacionalidade portuguesa, Portugal, através dos seus canais diplomáticos, tem que tratar de os receber, se isso for uma entrega partilhada por todos os países, em especial da comunidade europeia.”
Recentemente, Donald Trump, Presidente dos EUA, pediu aos países europeus que assumam responsabilidade pelos "seus" jihadistas, sugerindo que devem receber e julgar os extremistas que, neste momento, estão nas mãos dos aliados curdos e árabes do Ocidente.
Já o Presidente do Iraque, Barham Salih, avisou que os jihadistas estrangeiros que tenham assassinado cidadãos iraquianos poderão ser condenados à morte – embora tenha admitido que Bagdade espera repatriar muitos destes suspeitos, a fim de serem julgados nos seus países de origem.
Do lado da UE, a chefe da diplomacia comunitária, Federica Mogherini, já disponibilizou os seus serviços para coordenar uma resposta conjunta em relação ao regresso dos europeus que combateram com o grupo na Síria. Mas essa resposta coordenada tarda em chegar.
“Devia haver um tribunal internacional para julgar crimes de terrorismo”
As Forças Democráticas da Síria (SDF, na sigla inglesa), anunciaram a 23 de março a vitória final sobre o Daesh naquele país. Tomaram a vila de Baghuz, o último bastião do EI na Síria, e capturaram milhares de jihadistas. Pedem agora ajuda à comunidade internacional para que seja feita justiça em relação aos crimes que cometeram em nome de uma fé distorcida.
Haverá cerca de mil radicais europeus em prisões curdas à espera de um destino e de julgamento.
A administração curda do norte da Síria defende a criação de um tribunal especial internacional para julgar os crimes dos terroristas, uma opinião que é partilhada por Rui Pereira, antigo ministro da Administração Interna portuguesa.
“Eu tenho defendido sempre que devia haver um tribunal internacional para julgar crimes de terrorismo desta natureza”, diz à Renascença. “Defendo isso para evitar conflitos entre várias ordens jurídicas de vários países e por uma razão simples: é que o Tribunal Penal Internacional não tem competência para julgar crimes de terrorismo. Por outro lado, seria um sinal muito positivo da comunidade internacional de unidade na luta contra o terrorismo criar hoje um tribunal internacional para julgar esses crimes.”
Em todo o caso, sublinha o antigo governante, os que aderiram ao Estado Islâmico “podem ser, sem dúvida, julgados em Portugal, até porque nestes crimes de terrorismo há regras especiais que afirmam a aplicação da lei penal portuguesa, mesmo em crimes de terrorismo internacional. Para além de os agentes serem portugueses, mesmo que sejam estrangeiros, a lei penal portuguesa aplica-se sempre”.
Rui Pereira reafirma que as autoridades nacionais devem, desde já, avançar com processos-crime contra os jihadistas portugueses. “O princípio da legalidade impõe que se instaurem os necessários processos”, sublinha.
O presidente do OSCOT considera que a sugestão de um tribunal especial “faz sentido” para que as penas sejam “mais uniformes” porque, refere, “há situações e situações, países e países e, muitas vezes, os crimes não são punidos da mesma forma”.
“Tratando-se de um espaço europeu, deveria haver um tribunal específico para isso, mas aqui a questão é sempre de base: temos que ter prova inequívoca de que aqueles combatentes que foram detidos em vida praticaram esses atos e temos que ter a capacidade para ter um julgamento justo”, refere António Nunes.
Atenuantes para jihadistas arrependidos?
Quando chegarem a Portugal, os jihadistas e, eventualmente, as mulheres que os acompanharam, arriscam penas de entre oito e 15 anos de prisão por adesão a uma organização terrorista, mas há atenuantes para os arrependidos, explica Rui Pereira.
“A lei portuguesa contém um instrumento de política criminal que é muito importante e que deve ser encarado com muito critério pelas autoridades judiciárias e pelos órgãos de polícia criminal. Prevê não apenas uma atenuação especial, mas a possibilidade de o agente do crime não ser punido se abandonar de livre vontade a organização e, porventura, colaborar com as autoridades até na investigação e prevenção de futuros atentados terroristas”, afirma o especialista em Direito Penal.
Rui Pereira entende que a atenuante não se aplica a todos os crimes. Se um português cometeu homicídios em nome do autoproclamado Estado Islâmico, por exemplo, “esses crimes de terrorismo já não podem ser abrangidos por esta espécie de perdão”.
“Aí estão em causa crimes de homicídio que são punidos de acordo com a legislação geral e o efeito da lei antiterrorista é agravar a responsabilidade nesses casos apenas.”
António Nunes, do Observatório do Terrorismo, acrescenta que a moldura penal vai variar caso a caso. Além da adesão a uma organização terrorista, podem ser acusados de atos terroristas, homicídios e até genocídio. “É muito variável, depende muito daquilo que vier acompanhado e pode ser até diferente para cada um deles, se chegarem a vir para Portugal.”
Após cumprirem pena de prisão, refere o presidente do OSCOT, “é normal” que estas pessoas radicalizadas que tenham estado envolvidas com o Daesh “tenham, pelo menos, um registo e um acompanhamento dos nossos serviços secretos”.
Provar crimes no Daesh pode ser “impossível”
O processo de recolha de provas para acusar suspeitos de integrarem as fileiras do Daesh pode ser, em algumas situações, muito complicado, nomeadamente em relação a crimes cometidos na Síria ou no Iraque.
António Nunes lembra que, como em qualquer processo judicial, “temos que ter prova inequívoca de que aqueles combatentes que foram detidos em vida praticaram esses atos e temos que ter a capacidade para ter um julgamento justo”. Nalguns casos, poderá ser “impossível” obter prova, reconhece.
O antigo ministro da Administração Interna Rui Pereira concorda que, em alguns casos, será difícil reunir provas sobre alegados crimes cometidos na Síria ou no Iraque ao serviço do Daesh, mas em relação ao crime de pertença a um grupo terrorista a situação é diferente.
“O crime de pertença a organização pode ser provado de várias formas: documentalmente, através de testemunhas, de quaisquer meios considerados válidos não proibidos pelo Código de Processo Penal. Eu creio que pode haver crimes mais difíceis de provar, mas a pertença a organização, em alguns casos, não será eventualmente tão difícil de provar como isso, porque estamos a falar da simples pertença. Não é obrigatório haver um documento oficial para provar a pertença, é preciso provar que houve colaboração com a organização”, sublinha.
O que fazer às famílias dos jihadistas retidas no estrangeiro?
Estão numa espécie de limbo. Nos últimos meses foram noticiados os casos de, pelo menos, três crianças e duas mulheres familiares de jihadistas com nacionalidade portuguesa a viver a viver "no limbo" em campos curdos, na Síria, como aquele que o "New York Times" visitou recentemente.
Entretanto, o Ministério dos Negócios Estrangeiros confirmou no passado fim-de-semana, num comunicado citado pelo semanário "Expresso", que está em contacto com estas famílias a fim de “compatibilizar os dois objetivos” que orientam Portugal – “a defesa da segurança nacional e a proteção de concidadãos em situação vulnerável” – e assim dar início ao processo de repatriamento destas mulheres e crianças.
Sobre este último ponto, Rui Pereira e António Nunes concordam que “há uma questão humanitária que é atendível”, mas sublinham que é preciso analisar caso a caso.
“Não podemos pensar que todas as pessoas que são familiares de ex-combatentes estão inocentes”, sublinha o presidente do OSCOT, referindo uma “dificuldade jurídica” inerente a eventuais processos de repatriamento. “Podemos estar perante pessoas arrependidas, o que não quer dizer que estejam inocentes”, ressalta António Nunes.
Já Rui Pereira considera que “deve haver uma política humanitária de ajuda, na medida do possível, por parte do Estado português”.
O antigo ministro sustenta que, “se uma rapariga se limitou a ir com o marido, não fez nada, direta ou indiretamente, de apoio ao Estado Islâmico, não é por isso que vai ter um processo-crime”. Pelo contrário, “se desenvolveu atividades de apoio ao Estado Islâmico, isso sim, mas há a tal norma de impunidade que pode vir a ser aplicada”.
O ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, diz que o Governo está a par de tudo, mas fala numa questão “muito complexa”, que “não se resolve com facilidade”.
Augusto Santos Silva diz que, "como cidadãs portuguesas, essas pessoas têm direito a proteção consular de Portugal", mas há outras dimensões que é preciso ter em atenção. “A principal das quais é uma variável relativa à segurança nacional portuguesa e, em segundo lugar, às obrigações de Portugal como membro da coligação internacional anti-Daesh e como membro da UE e da NATO", declarou a 18 de fevereiro no final de uma reunião, em Bruxelas.
O ministro foi mais longe quando afirmou: "Nós não queremos em Portugal pessoas que possam constituir uma ameaça ao modo de vida, aos valores e às pessoas dos portugueses."
Enquanto a União Europeia está a analisar o problema, alguns países têm atuado. Por exemplo, a França decidiu repatriar filhos de extremistas e o Reino Unido retirou a nacionalidade a Shamima Begum, uma mulher que fugiu aos 15 anos para se juntar ao Estado Islâmico, no seio do qual acabou por casar.
Enquanto o impasse persiste, António Nunes defende que podiam ser criadas “melhores condições nos campos” de refugiados onde estão as famílias dos jihadistas que combateram em nome do califado que Abu Bakr al-Baghdadi proclamou em 2014, e que chegou a controlar vastas áreas da Síria e do Iraque até ao início deste ano.