Lucy Hawking, filha do cosmólogo britânico Stephen Hawking, consegue ver a cara que o pai faria se pudesse ter-lhe dito que os seus restos mortais seriam depositados ao lado de dois dos seus maiores heróis, o físico Isaac Newton (1643-1727), que formulou a lei da gravitação universal, e o naturalista Charles Darwin (1809-1882), que postulou a teoria da evolução das espécies por seleção natural.
“Ele teria chorado e sorrido, ao mesmo tempo”, diz, emocionada. “Nós não sabíamos. Ofereceram-nos esta honra extraordinária, depois de ele falecer” em março, conta em entrevista à Renascença. “Quem me dera que ele soubesse.”
Na semana em que o livro póstumo de Stephen Hawking, “Breves Respostas às Grandes Perguntas”, é lançado em Portugal pela editora Planeta, Lucy Hawking recorda o lado mais pessoal de um dos maiores astrofísicos de todos os tempos, numa videochamada realizada na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
A última obra de Stephen Hawking é uma espécie de “FAQ” (“Frequently asked questions”, ou perguntas mais frequentes, em português). O cientista decidiu juntar num livro as respostas às perguntas que mais lhe faziam em vida – com a preocupação de não ser demasiado técnico ou complicado no discurso.
As respostas são um misto de opiniões do astrofísico britânico sobre as “grandes questões”, conjugadas com as conclusões relativas aos seus trabalhos científicos. Stephen Hawking responde às perguntas: “Existe um Deus?”, “Como começou tudo?”, “Podemos prever o futuro?”, “Viajar no tempo será possível?”, “Existirá mais vida inteligente no universo?”, “Ficará a Inteligência Artificial mais inteligente do que nós?”, “O que existe dentro de um buraco negro?”, “Devemos colonizar o espaço?”, “Como moldamos o futuro?”, “Sobreviveremos na Terra?”.
“Acho que este livro é provavelmente o mais fácil de ler de todo o trabalho do meu pai”, afirma Lucy Hawking. “Claro que vem no fim da sua carreira, ele já tinha 30 anos de experiência como comunicador da ciência, a encontrar maneiras divertidas e claras de explicar as coisas.”
Lucy conta que o pai “estava constantemente à procura de maneiras que tornassem os seus livros acessíveis para as pessoas que não tivessem formação em ciência, porque ele achava que era muito importante que toda a gente tivesse alguma literacia científica”.
“Ele costumava dizer que queria que os seus livros fossem vendidos em aeroportos”, recorda. “Para ele, isso queria dizer que era popular e que alguém que não fosse um académico iria comprar.”
Para a escritora de livros de literatura científica juvenil, ler os últimos escritos do pai “foi muito emocional, porque é como estar imerso numa conversa com ele”.
Na entrevista à Renascença, Lucy revela ainda que o livro marcou muito a sua mãe, Jane Hawking, a primeira mulher do astrofísico.
“Por acaso a minha mãe disse-me, há uns dias, que se sentia muito emocionada a ler este livro. ‘É como ter uma conversa com o teu pai’, disse ela. Para mim esse é o melhor efeito que o livro podia ter, ter a minha mãe a dizer isto.”
Um dos capítulos preferidos da escritora, em “Breves respostas às Grandes Perguntas”, é a resposta à questão “Como moldamos o futuro?”. “Porque esta é a visão do otimismo do meu pai. É sobre humanidade, sobre os jovens, sobre o enorme potencial da ciência e tecnologia para mudar as nossas vidas para melhor, mas é também sobre a sua insistência em que os jovens tenham acesso a uma educação que lhes permita empenharem-se na ciência e na tecnologia”, explica a filha do astrofísico.
De cadeira de rodas em “velocidade máxima” pelas ruas de Cambridge. “Todos reparavam em nós”
Dias depois de Lucy nascer, em 1970, Stephen Hawking teve o seu momento “eureka”, que o levou a perceber que os buracos negros “não eram assim tão negros” e que emitiam, na verdade, um brilho – hoje conhecido como “Radiação Hawking”.
Foi aí que o cosmólogo decidiu aprofundar este tema, que ocupou grande parte da sua carreira e lhe garantiu o reconhecimento da comunidade científica.
As suas importantes descobertas, aliadas à doença incapacitante que lhe foi diagnosticada aos 21 anos – esclerose lateral amiotrófica (ELA) – marcaram a infância de Lucy.
“Quando és criança só conheces a tua realidade – e isso parece a normalidade”, diz. No entanto, Lucy não tardou a descobrir que a sua família era diferente das outras.
“O meu pai estava numa cadeira de rodas, e mesmo assim era completamente independente e autónomo. Ia a todo o lado a grande velocidade, levava-nos a passear, portanto éramos duas crianças e um homem numa cadeira de rodas. Nos anos 70, em Cambridge, nunca ninguém tinha visto nada assim”, recorda.
“As pessoas olhavam para nós fixamente. Porque as pessoas esperavam que alguém com deficiência estivesse sentado com uma manta nos joelhos e que fosse levado por uma enfermeira a passear ocasionalmente.”
Não era isso que acontecia com Stephen Hawking. “O meu pai ia, vrrrum, a velocidade máxima naquelas ruas medievais de Cambridge, para um trabalho que não era normal uma pessoa com deficiência ter. Isso era muito surpreendente para muita gente. Não podíamos ir a lado nenhum discretamente. Não podíamos ir a lado nenhum sem toda a gente reparar em nós”, lembra Lucy Hawking.
Uma infância (fora do) normal
A escritora e jornalista recorda também os “telefonemas estranhos” que atendia, desde pessoas que alegavam que tinham de falar urgentemente com Stephen, porque o universo estava prestes a acabar, a personagens como o “Isaac Newton japonês”, que ligava sempre a horas inconvenientes.
Apesar de todo o trabalho e da atenção que recebia, Stephen Hawking queria muito estar envolvido na vida dos filhos. Lucy lembra como o pai fazia um esforço por levar o irmão, que tinha muito interesse em Fórmula 1, a corridas – mesmo quando já estava bastante incapacitado.
Nessa altura, Stephen ainda usava a sua voz original. “Tinha cerca de 15 anos quando ele a perdeu e começou a falar com a voz computadorizada”, lembra a filha.
Antes disso, a voz do britânico foi-se deteriorando e ficando cada vez mais impercetível. Nessa altura, Lucy e o irmão mais velho, Robert, eram quase “tradutores” do pai.
“O meu irmão e eu conseguíamos compreendê-lo de uma maneira que as outras pessoas não conseguiam. Muitas vezes ele podia estar a dizer coisas técnicas ou científicas que eu não percebia, mas sabia que ele tinha dito aquelas palavras”.
Já na vida adulta, Stephen chegou a colaborar numa série de livros para jovens escritos pela filha. Lucy recorda que o pai sempre quis que ela fosse cientista, mas a jovem decidiu enveredar pelo mundo das artes e da criatividade.
"Foi interessante que as coisas tenham dado esta volta e eu tenha acabado por pegar em tudo o que adorava em ser escritora e aplicá-lo à informação científica."
Trabalhar com o pai, no início, foi "assustador". "Porque eu pensava 'oh, ele sabe tudo'. Mas foi também muito divertido, porque ele nunca tinha escrito ficção antes. Portanto esta foi mesmo a primeira tentativa de chegar a personagens, a uma ação, a um diálogo... e ele adorou isso. Achou muito divertido. E claro que foi a primeira vez que eu escrevi sobre ciência dessa maneira. Portanto foi um processo de aprendizagem para os dois. Mas acho que os dois gostámos disso".
A solidão de Hawking. "Todos achavam que lhe deviam dizer algo brilhante"
O prefácio do livro póstumo de Stephen Hawking é assinado por Eddie Redmayne, o ator que faz de Stephen no filme sobre a sua vida, “Teoria de Tudo”.
No texto, o ator refere que o primeiro encontro com o cientista lhe trouxe grande nervosismo, o que o levou a falar demasiado, para preencher o silêncio que surgia naturalmente (para responder, o cientista tinha de escrever num computador, usando a sua bochecha).
Lucy Hawking diz que este nervosismo era muito comum nas pessoas que privavam com Stephen e que isso lhe trazia alguma tristeza.
“O meu pai disse-me, nos últimos anos da sua vida, que se sentia muito sozinho. Porque sentia que as pessoas não se aproximavam dele para conversar como poderiam. Toda a gente achava que tinha de dizer algo brilhante, mas ele não queria isso”, explica a filha.
“Ele dizia-me: ‘Porque é que as pessoas não podem simplesmente conversar? Talvez eu gostasse que as pessoas falassem comigo sobre como eu sou, ou que simplesmente me dissessem como elas são’.”
“Acho que ele sentia que isso era uma pena, porque ele gostava de simplesmente conversar, não queria que as pessoas o impressionassem ou lhe dissessem coisas brilhantes”, diz Lucy.
No entanto, considera que o pai conseguiu transformar uma doença muito incapacitante, que lhe trouxe muito sofrimento, em algo positivo. “Se ele não tivesse esta deficiência, quem sabe o que ele poderia ter feito?”
Esta é uma pergunta que Lucy se faz muitas vezes. “Acho que talvez não tivesse feito mais”, conclui. “A maneira como ele o diz, ‘a doença deu-me mais tempo para pensar’, mostra o quão positivo ele era.”
“Ele era otimista a um ponto que acho que poucas pessoas conseguiriam ser. Eu, pessoalmente, pensei muito sobre isto e não acredito que conseguisse chegar a esse nível de otimismo naquelas circunstâncias”, confessa.
A verdade é que, por ter recebido um prognóstico de apenas dois anos de vida, aos 21 anos, Stephen “tinha muita noção do quão precioso é o tempo”, recorda a filha do astrofísico. “Depois acabou por viver até aos 76, mas ele não sabia disso. Nenhum de nós sabia que ele iria ter esta longevidade. E nunca podíamos assumir que havia um amanhã.”
Esta ideia de que Stephen tinha pouco tempo de vida foi muito marcante para a família Hawking. “Fez com que houvesse muito imediatismo”, conta Lucy. “Este sentimento de que ‘se vais fazer alguma coisa, faz agora, não procrastines’. Tudo o que temos é o hoje. Esse era o nosso lema em família."
“Não dava para desperdiçar tempo. Essa foi uma das grandes lições que aprendi na minha infância. Que o tempo é uma comodidade, que é precioso, e que não podes desperdiçá-lo”, conta Lucy Hawking.
“Levava o seu trabalho a sério, mas não se levava a sério”
Uma das características mais elogiadas do astrofísico era o seu grande sentido de humor. Stephen Hawking ficou conhecido por colaborar em séries de comédia como “The Simpsons” e “Big Bang Theory” e pelas afirmações sarcásticas nas suas intervenções públicas.
No livro “Breves Respostas às Grandes Perguntas”, recorda uma célebre história que demonstra o seu sentido de humor: uma festa para viajantes no tempo.
Hawking lembra que, em 2009, organizou uma festa para viajantes no tempo, na sua faculdade, em Cambridge.
“Para me assegurar que só compareceriam viajantes no tempo genuínos, os convites foram enviados apenas depois da festa. No dia da festa, sentei-me na faculdade, esperançoso, mas não apareceu ninguém. Fiquei desiludido, mas não surpreendido, porque tinha mostrado que, se a relatividade geral estiver correta e a densidade de energia for positiva, as viagens no tempo não são possíveis.”
À Renascença, Lucy garante que esta festa aconteceu mesmo. “Eu estava lá com ele! Abrimos pacotes de batatas fritas e garrafas de refrigerantes, sentámo-nos lá, tínhamos um ‘banner’ a dizer ‘Bem-vindos, viajantes no tempo’.”
A escritora diz que admirava muito o pai por conseguir ter um sentido de humor tão apurado em circunstâncias tão difíceis. Por isso e pela sua humildade.
No livro, ressalta Lucy, o pai escreve a frase “A nossa imagem do universo mudou muito nos últimos 50 anos, e fico feliz se tiver dado uma contribuição.”
“Só ele acrescentaria ‘se’ a tal frase”, afirma a filha. “Era assim que ele era. As pessoas diziam que ele era o homem mais inteligente do mundo, ele dizia que não, não era ele. As pessoas perguntavam "qual é o seu QI?", ele dizia ‘o que é que isso interessa? As pessoas que se gabam do seu QI são falhadas’”.
“Isso era muito típico dele”, explica Lucy. Stephen não gostava de entrar no jogo de “quem é o melhor”. E levava a sério o seu trabalho como cientista, apesar de não se levar a sério.
Hawking era ateu, mas teve funeral religioso. “Fez todo o sentido”
Lucy Hawking descreve o dia do funeral do pai, que teve de organizar “num espaço de tempo muito curto”, como “esmagador”.
“Era complicado, porque o meu pai era um homem tão extraordinário, queríamos que fosse um tributo a ele, queríamos que fosse apropriado, ter a certeza que tínhamos as pessoas certas”, conta.
A escritora diz que não estava preparada para o número de pessoas que apareceu nas ruas de Cambridge nesse dia. “Vi uma fotografia aérea e é impressionante”.
O funeral de Stephen decorreu na igreja de Santa Maria, na universidade de Cambridge. A escolha de uma cerimónia religiosa surpreendeu o mundo, já que Stephen Hawking era um ateu convicto.
“É algo sobre o qual nos têm perguntado muito”, revela a filha do cientista. “A igreja em que decorreu o funeral é onde, por tradição, académicos distintos da universidade de Cambridge têm os seus funerais. O meu pai, apesar de ser um iconoclasta, era também um homem muito tradicional”, conta.
“Nesse sentido, foi muito apropriado. A cerimónia foi conduzida pelo capelão da universidade, que o conhecia pessoalmente. As leituras foram de Platão, os tributos foram feitos por cientistas e pelo meu irmão, a música foi uma obra maravilhosa composta com algumas palavras de “Breve História do Tempo”. E o meu pai adorava música, adorava coros, adorava tradição. Sentimos que tudo aquilo fazia sentido”, explica Lucy Hawking.
A cerimónia contou com a presença de muitos cientistas que fizeram a Lucy a mesma pergunta. “Porque é que estamos a ir a uma igreja para o funeral do Stephen?”
No entanto, no fim, a escritora diz que todos acharam apropriado. Recorda mesmo o comentário de alguém que tinha criticado a escolha. “No final, disseram-me ‘isto foi perfeito. Fez todo o sentido, acertaste em cheio’. É isso que posso dizer, pareceu a coisa certa a fazer”.
A única coisa que faltou? Ir ao Espaço
Stephen Hawking conseguiu cumprir muito mais, na sua vida, do que alguma vez pensou conseguir após ter sido diagnosticado com ELA.
No entanto, faltou ao físico cumprir um desejo antigo: ir ao Espaço. “Era algo que ele queria muito fazer. Nem consigo imaginar como é que isso teria sido. Mas ele queria mesmo conseguir deixar a atmosfera e ver o cosmos sem filtros. Queria estar lá, fazer parte disso”, conta a filha.
Em 2017, Stephen chegou mesmo a aceitar o convite de Richard Branson para ser um dos passageiros do primeiro voo comercial da Virgin Galactic para o Espaço.
“Tenho a certeza de que vão estar a pensar nele quando a primeira nave partir”, sublinha Lucy.
Apesar de não ter ido ao Espaço, Stephen chegou a realizar o sonho de experimentar a gravidade zero, com a Zero Gravity Corp, uma empresa que organiza treinos para astronautas. Um momento que Lucy, que acompanhou o pai na experiência, nunca irá esquecer.
“Adoro esta ideia de que ele se levantou da cadeira para flutuar. E estava livre. Essa é uma das imagens mais tocantes dele."
Lucy conta também que essa foi a imagem que a família decidiu mostrar no funeral de Stephen. "Tem a maçã de Newton ao lado, está a flutuar com ela. E tem o maior sorriso na cara que alguma vez vimos.”