​O Maior Bem das Minorias e o Maior Bem das Maiorias: um conflito emergente
07-07-2021 - 14:13

Só podemos discutir seriamente e com respeito questões de natureza ética se, nem que seja no fundo do fundo de cerebelo, conseguirmos pensar que, eventualmente, o outro pode ter razão.

Vou começar esta crónica com uma história pessoal. Na altura em que era “normal” viajar, numa viagem a Bruxelas, encontrei um colega de trabalho que é, notoriamente, de esquerda. Sei que nessa altura esteve envolvido na redação de alguns projectos de lei “disruptivos”, mas, de facto, sempre tive a impressão de ser uma pessoa intelectualmente seríssima.

Numa daquelas conversas enquanto se espera para embarcar, conversamos, como é óbvio, sobre os motivos da nossa viagem. Eu ia fazer uma avaliação ética de projectos europeus que envolviam populações vulneráveis (crianças, doentes mentais…) e ele iria avaliar projectos que envolviam o uso de células obtidas a partir de embriões. Como era habitual, o embarque atrasou e tivemos tempo para discutir alguns temas na área da ética.

Eu, como sempre que posso faço, manifestei o meu enorme desconforto revestido, inclusive, por uma sensação de falta de respeito, por, na Europa, assim como em Portugal, ser muito mais difícil fazer investigação em animais, devido à existência de uma Directiva Europeia que os protege e tem requisitos muito restritivos, do que em embriões. No mínimo, disse eu, usar o mesmo princípio que é obrigatório para a investigação nos animais “ o princípio dos 3 R´s” que, significa que devem ser encetadas todas as medidas para reduzir o número de animais, refinar as experiências no sentido de evitar dor e sofrimento e substituir (R do inglês replacemet), ou seja, qualquer investigador tem que providenciar evidências sólidas para justificar o porquê de necessitar de investigar em animais e o motivo porque não pode usar alternativas células, tecidos…).

Finalmente, embarcamos a conversa ficou por aí… Após uma semana de trabalho, por coincidência, voltamos no mesmo voo. Num tímido que o caracteriza, mal nos encontramos disse-me:

- Tenho uma boa notícia para si. Consegui convencer o grupo com que estive a trabalhar durante a semana a usarmos o princípio dos 3 R´s para os projectos com células derivadas de embriões…

- Que bom! Mas porquê? Eu sei que a sua posição diverge da minha relativamente ao respeito pelo embrião humano…

- Não, Ana Sofia, não foi por motivações relacionadas com o respeito pelo embrião, mas sim, por respeito a pessoas como a Ana Sofia que consideram que este novo ser merece respeito…

Felizmente, tenho tido o privilégio de conhecer muitas pessoas assim e, de facto, tenho, durante a minha vida, tentado usar uma frase de Gadamer que não sei onde está a citação que, basicamente, diz que só podemos discutir seriamente e com respeito questões de natureza ética se, nem que seja no fundo do fundo de cerebelo, conseguirmos pensar que, eventualmente, o outro pode ter razão. Não é fácil, mas, por experiência própria, confirmo que é uma exercício que nos acrescenta.

Toda esta história serve como metáfora do sentido de desrespeito que temos assistido quer ao nível dos assuntos em discussão no Parlamento português e no Parlamento Europeu.

e facto, numa Europa e num país em que tanta coisa correu tão mal, idosos abandonados em lares, uma crise no sector da saúde e social que será como um tsunami que deixa um país, uma Europa em escombros, os nossos deputados, ocupam-se de legislar sobre “o aborto como um Direito Humano”, Relatório Malik do parlamento Europeu, o novo texto sobre a eutanásia, que soubemos ontem está prestes a ser finalizado, a lei que, porque existiu um caso num Hospital do Norte, veio regular o acesso à possibilidade de utilizar o esperma de uma pessoa morta para através da procriação medicamente assistida permitir, à mulher enlutada, ter um filho, à questão, sempre urgente,do acesso à gestação de substituição…

No fundo, vivemos num país, e agora numa Europa que mimetiza o pior do que se têm feito em Portugal, que ostraciza e esmaga o maior bem de todos.

Na lógica da pertença defesa das minorias, somos nós, tendencialmente os dominantes, dominados. Os esquadros desta hiperbolização da protecção das minorias deixam de fora tudo que interessa à maioria da população; quem protegeu os idosos abandonados nos lares, quem legisla contra a discriminação dos doentes não COVID e o retrocesso incalculável que esta pandemia trará ao sistema nacional de saúde... Afinal, numa altura em todos deveríamos estar a construir pontes de respeito e com isso permitir uma solidariedade exigente e compatível com um potencial regresso ao normal; não…estamos a dividir a desrespeitar e, mais importante, a ferir a dignidade de todos que pelas circunstâncias actuais somos, também, vulneráveis e frágeis.