Embaixador do Iraque deixa Portugal com vários processos na justiça por resolver
19-01-2017 - 21:43
 • Filipe d'Avillez

Despedimentos durante a licença de maternidade ou baixas médicas e redução de vencimentos justificados com a guerra contra o Estado Islâmico. Há vários processos laborais contra a embaixada do Iraque desde que Saad Mohammed Ali chegou a Portugal.

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A anunciada saída de Portugal do embaixador do Iraque, Saad Mohammed Ali, põe fim a uma missão diplomática que não cessou de acumular casos na justiça desde o seu início.

A Renascença sabe que, além do caso do alegado espancamento de Rúben Cavaco por parte dos filhos do embaixador, existem vários processos em tribunal contra a embaixada por alegados despedimentos ilícitos, todas com datas posteriores à chegada de Saad Mohammed Ali a Lisboa.

Fontes ligadas aos casos dizem à Renascença que houve pelo menos sete pessoas despedidas desde que Saad Mohammed Ali iniciou funções, algumas delas em situações que violam a lei laboral portuguesa.

Um dos casos diz respeito a uma funcionária que estava em licença de maternidade, depois de ter estado de baixa por gravidez de risco, na altura em que começou a receber cartas da embaixada a dizer que já não contavam com os seus serviços. Contudo, nunca lhe chegou qualquer carta oficial de despedimento, o que a deixou sem possibilidade de receber subsídio de desemprego.

Antes disso, esta funcionária tinha trabalhado durante alguns meses com o novo embaixador e nesse período de tempo, sem que fosse assinado um novo contrato, foi informada que passaria a trabalhar seis dias por semana em vez de cinco e mais meia hora por dia.

Há pelo menos mais uma situação de uma pessoa que foi avisada do seu despedimento enquanto estava de baixa médica.

Uma terceira pessoa que foi despedida, e que tem um processo em tribunal contra a embaixada, a que a Renascença teve acesso, explica que o mau ambiente começou com a chegada do actual embaixador, que terá encarado os funcionários como sendo leais ao anterior diplomata com o cargo, Hussain Sinjari.

Quando se tornou público o caso de Ponte de Sor, Hussain Sinjari escreveu um “email” a amigos e colaboradores portugueses e iraquianos, noticiado em exclusivo pela Renascença, em que se revelava “horrorizado” e “envergonhado” pelas “agressões bárbaras” protagonizadas pelos filhos do seu sucessor e se desdobrava em elogios ao povo português. Nesta altura, Saad Mohammed Ali dizia que os seus gémeos tinham sido agredidos por motivos racistas.

Justificação: Estado Islâmico

A Renascença contactou a embaixada do Iraque, que justificou os vários casos laborais com a guerra contra o Estado Islâmico.

O embaixador, por via da funcionária Dikra Khatchik, mandou dizer que “a situação no Iraque está difícil, com o problema no Norte do Iraque, onde o exército está a combater o Estado Islâmico. No ministério [dos Negócios Estrangeiros do Iraque] tivemos alguns descontos dos ordenados dos funcionários locais, até diplomatas. Os funcionários locais não aceitaram os descontos, não aceitaram as informações que chegaram. Não temos nada a ver. O ministério tomou a atitude. Como eles não aceitaram, deixaram a embaixada. Nós não podemos fazer nada, porque a ordem é do ministério”.

Contudo, o processo a que a Renascença teve acesso, e os relatos que ouviu dos ex-funcionários com quem falou, vão num sentido diferente.

No processo, por exemplo, são feitas acusações graves contra a pessoa que foi despedida. Estas acusações são negadas pelo trabalhador em causa, que contrapõe que lhe foi solicitado que cometesse ilegalidades por ordem da embaixada e que foi despedido quando se recusou. “Ele tinha uma frase que repetia muitas vezes sobre Portugal. Gostava de dizer ‘Este país não tem leis’”, diz esta fonte.

O jurista Luís Gonçalves da Silva, especialista em direito do trabalho, rejeita a explicação dada pela embaixada. “Se estamos perante situações económicas há regimes próprios, que podem ser despedimento colectivo ou extinção do posto de trabalho. Mas não permitem eliminação do contrato e muito menos celebração de novo contrato com diminuição da retribuição, isso é claramente ilegal.”

No processo a que a Renascença teve acesso, a embaixada do Iraque começou por contrapor que os tribunais portugueses não têm competência para julgar estas situações, por a embaixada ser considerada território soberano do Iraque.

Em primeira instância foi-lhe dada razão, mas, após recurso, a Relação decidiu que os tribunais portugueses têm competência, sim, pelo menos para decidir sobre o pagamento de retribuições intercalares – isto é, os ordenados e subsídios em dívida desde o momento do despedimento ilícito até ao fim do processo, bem como danos morais –, embora não tenham competência para decretar a reintegração nem o pagamento de indemnizações.

Luís Gonçalves da Silva diz que não é comum haver tantos processos nos tribunais contra uma embaixada. “Não tenho ideia de serem casos comuns nos nossos tribunais. Lendo o acórdão vemos que a jurisprudência citada não é abundante. O que não significa que não possa ser comum a litigiosidade e ela não chegar aos tribunais”, conclui.

Com a partida de Saad Mohammed Ali e a sua família de Portugal, o Iraque terá de nomear um novo representante, mas será preciso esperar para ver se isso afecta os processos que já existem. Por enquanto, pelo menos, os ex-funcionários com quem a Renascença falou revelaram alívio pela partida do embaixador e indicam que esse seu sentimento é partilhado por ex-colegas que permanecem ao serviço da embaixada.