Durante mais de duas décadas (1985-2010), Mohamed Al-Fayed foi dono dos armazéns Harrods – epítome do retalho luxo no Reino Unido. O milionário egípcio, nascido na cidade de Alexandria, era conhecido por frequentar as lojas, assediar funcionárias e ter uma predileção por jovens louras.
“A palavra entre as funcionárias era que devíamos fazer tudo o que estivesse ao nosso alcance para evitar sermos notadas por ele. Isto era difícil, uma vez que ele andava regularmente a passear pela loja acompanhado por uma comitiva masculina, marcando as funcionárias com quem queria ter uma audiência privada”, recorda uma antiga funcionária, num texto publicado no “Guardian”.
“Era do conhecimento geral que Fayed preferia as mulheres nos balcões de perfumes e maquilhagem e que, alegadamente, oferecia promoções e dinheiro àquelas que lhe chamavam a atenção.”
Na época, houve notícias, livros até, e queixas que chegaram à justiça britânica. Mas nenhuma investigação deu em acusação – por diferentes motivos.
O empresário egípcio, dono do Hotel Ritz de Paris, assim como do clube de futebol Fulham (entre 1995 e 2013), tinha amigos no poder político londrino, privava com a realeza. (Um dos seus filhos, Dodi, morreu com a Princesa Diana, em 1997, em Paris, num acidente rodoviário.) Além disso, tinha também meios próprios – advogados, seguranças – capazes de abafar rumores e escândalos.
Em setembro do ano passado, quando morreu, aos 94 anos, Al-Fayed foi recordado na “BBC” por um antigo trabalhador como alguém “cheio de humanidade”. O jornalista Piers Morgan descreveu-o como um homem “complexo” e “extraordinário”.
No entanto, o documentário “Al-Fayed: Predator At Harrods”, emitido pela “BBC” há duas semanas, estilhaçou (a título definitivo) essa imagem.
Vinte mulheres – na maioria, funcionárias do Harrods – vieram a público e acusaram o milionário de crimes sexuais. Cinco afirmaram mesmo ter sido violadas.
O documentário da “BBC” gerou uma onda de choque no Reino Unido, fez emergir o testemunho de mais mulheres. Ninguém imaginava que fossem tantas. Nem os advogados nem a Polícia Metropolitana de Londres.
Centenas de vítimas
Em cerca de quinze dias, mais de 200 mulheres (de todos os cantos do mundo) entraram em contacto com a polícia britânica ou com advogados das vítimas do milionário, 40 acrescentaram os seus nomes à lista. Ao todo, são já mais de 60.
Surgiram relatos de crimes sexuais nos armazéns Harrods, mas também em Saint Tropez, no sudeste da França, e Abu Dhabi.
“Pensámos que tivessem ocorrido abusos onde quer que Mohamed Al-Fayed fosse. Infelizmente, parece ser verdade. Reunimos agora provas credíveis de agressões em outras das suas propriedades e empresas. Especialmente relacionadas ao Fulham Football Club”, anunciaram os advogados das vítimas, na passada sexta-feira.
À “BBC”, Gaute Haugenes, treinador da equipa feminina do Fulham entre 2001 e 2003, assumiu que a equipa técnica estava ciente de que o empresário egípcio “gostava de raparigas jovens e loiras”.
Aliás, como medida de precaução, haviam proibido as jogadoras de estarem sozinhas com Al-Fayed.
Um segredo à vista de todos
Os comportamentos sexuais inapropriados por parte de Mohamed Al-Fayed remontam, pelo menos, à década de 1990. Já então estavam longe de ser segredo - quer fora quer dentro do Harrods.
Em declarações à “Sky News”, um ex-diretor dos armazéns já veio dizer que não há forma de pelo menos as equipas de segurança das lojas “não saberem”.
“Havia seguranças em todo o lado, todos os telemóveis e escritórios estavam a ser vigiados, com câmaras por todo o lado”, lembrou.
O milionário tinha muitas assistentes, “todas louras”. “Ele só queria rodear-se de mulheres bonitas”, contou.
Em 1995, um perfil do milionário, publicado na revista norte-americana “Vanity Fair”, insinuou a possibilidade de Al-Fayed ser um abusador (além de racista). Três anos depois, numa biografia não-autorizada, antigas funcionárias do Harrods revelaram ter sido apalpadas, violadas e depois ameaçadas para não revelarem os abusos.
Em 2008, uma mulher procurou a Polícia Metropolitana de Londres e revelou ter sido abusada – quando tinha 15 anos – por Al-Fayed. (O caso chegou à imprensa, gerou grande pressão pública.) Cinco anos depois, outra mulher afirmou ter sido violada pelo milionário.
Em ambos os casos, a Procuradoria da Coroa Britânica (CPS) recusou-se a acusar formalmente o antigo proprietário da loja Harrods. (À época, o responsável pela CPS era o atual primeiro-ministro, Keir Starmer.)
“Para apresentar uma acusação, o CPS tem de estar confiante de que existe uma perspetiva realista de condenação. Em cada uma das ocasiões, os nossos procuradores examinaram cuidadosamente as provas e concluíram que não era esse o caso”, justificou um porta-voz da CPS.
A CPS poderia ainda ter intercedido noutras três investigações, mas não o fez porque nunca chegou a ser enviado aos procuradores pelo órgão de polícia criminal um dossier completo de provas.
Muitos dos crimes, segundo o “Guardian”, terão sido abafados por John Macnamara, o responsável pela segurança do milionário até 2019 – ano em que faleceu. “Ele sabia o que Mohamed fazia e limpava algumas dessas coisas para garantir que não se estendia mais”, contou uma das vítimas ao jornal.
Macnamara, antigo superintendente da polícia de Londres, foi responsável, inclusive, em 1994, por tentar silenciar uma portuguesa.
A portuguesa que enfrentou o milionário
Hermínia da Silva, emigrante madeirense no Reino Unido, foi ama dos filhos de Al-Fayed. E, quando essa função deixou de ser necessária, foi transferida para um bloco de apartamentos como empregada de limpeza.
De acordo com a imprensa da época, assim como outras mulheres, a emigrante portuguesa foi assediada pelo milionário, recusou os seus avançou e ameaçou apresentar queixa na polícia. (Em Portugal, o caso fez manchete no “Diário da Madeira”.)
Em reação, o empresário tentou incriminar Hermínia por um alegado roubo.
A portuguesa foi detida na esquadra de West End. Mas, dado a acusação não ter sustentação, acabou por ser libertada no dia seguinte.
Hermínia garantiu querer levar adiante a acusação de assédio sexual. Mas isso não chegou a acontecer. O milionário acabou a pagar 12 mil libras à portuguesa – num acordo extrajudicial.
Justiça para quem?
Al-Fayed morreu há pouco mais de um ano. Não poderá, portanto, ser chamado à responsabilidade pelos seus crimes. Então, talvez o Harrods? Talvez o Fulham?
Na passada quinta-feira, a atual direção dos armazéns – que desde 2010 pertence ao fundo de investimento do Qatar – emitiu um comunicado a dizer que o milionário havia criado uma “cultura tóxica” na empresa.
Revelou também que Al-Fayed fez acordos “amigáveis” e de confidencialidade com algumas funcionárias – mas não disse quantas e quais. Os advogados das vítimas que estão a acompanhar o caso já exigiriam acesso a essa informação.
A Polícia Metropolitana de Londres, por sua vez, está a investigar se outras pessoas “poderiam ser acusadas”.
“É importante deixar claro nesta fase que não é possível instaurar um processo criminal contra alguém que morreu. No entanto, devemos garantir que exploraremos plenamente se outras pessoas poderão ser processadas”, anunciou, em comunicado.
Enquanto não surgem na lista de responsáveis, a lista de vítimas ainda não está fechada.