A Renascença foi ao encontro de quatro doentes que recusam baixar os braços perante a notícia de doença grave. Recusam ouvir falar de eutanásia e dizem “sim” à vida.
Fernando achava-se “um fardo”, Conceição, Rui e Margarida dão voz às dificuldades e à vida que escolheram agarrar. Ao lado destas pessoas estão maridos e mulheres que os acompanham sem limites.
Damos também a conhecer o outro lado de quem deles cuida e nada recebe do Estado, os cuidadores.
Fernando, esclerose lateral amiotrófica
Há 12 anos que a vida de Fernando Azevedo e da família mudou. “Quando me foi diagnosticada a doença eu na altura não fiquei muito preocupado porque ainda trabalhei até começar a sentir sintomas sérios. Mais tarde, quando comecei a ficar em casa sem trabalhar, fui-me abaixo e achava-me um fardo. Não tinha condições de vida e monetárias. Representava só trabalho para a minha família. A minha mulher doente, teve de ser operada, e eu sem ter condições de ajudar. Nessa altura pensei em ir lá ter com a outra rapaziada”.
É de olhos postos na mulher Suzel, que conhece desde os 16 anos e com quem está casado há 32, que afirma “eu dependo dela para tudo! Ela rasgou os tendões por andar a carregar comigo”.
A mulher revela que é duro, “é preciso agarrá-lo com força”, hoje já não consegue muito bem. “Na cama sou eu que o viro e puxo com o braço esquerdo porque o direito está pior. Já não consigo pegá-lo ao colo, são os meus filhos que ajudam. Tenho dois filhos excecionais”.
Em tom de revolta confessa-nos: “ele pediu muita vez para morrer e deixou de comer! Eu e o miúdo deixámos de comer também. Um dos meus filhos deitou-se ao lado dele na cama. Então aí, ele começou a comer, a ganhar força e a ver que não podia continuar assim e que era importante para nós. Eu disse-lhe que se ele desistisse eu também desistia. A minha vida é com ele e com os meus filhos, não me estava a ver viver sem ele”.
Fernando diz: “só pensei neles! Não tinha direito de lhes estar a fazer mal. Eles não tinham culpa do que me estava a acontecer e dei a volta”. Confessa que pensou na morte e quis desistir porque achava que não tinha mais para dar e tinha medo de sofrer.
Depois da família surgiu uma outra missão: ajudar outros que sofrem com a mesma doença e juntar-se ao Movimento Filhos sem Voz. Hoje sente-se útil, a vida tem sentido apesar das muitas pedras que encontra no caminho.
Tem na mulher o braço direito. Fernando conta ‘tive um mês no hospital, foram dias muito complicados, sentia-me muito mal. Eu pedia para a minha mulher ficar ao pé de mim e eles não deixavam. Ela melhor que ninguém sabia cuidar de mim! Acabaram por entender, porque tive crises, muita expetoração, e outras coisas, e eles não conseguiam resolver. Só a minha mulher sabia cuidar de mim, sabia como me aliviar. Acabou por ser autorizada a ficar lá’.
Suzel mostra-se, no entanto, preocupada com o futuro: “não trabalho há vários anos, não faço descontos, não tenho ajuda do Estado. Como vai ser na altura da reforma? Não vou ter direito a nada nessa altura nem hoje reconhecem o meu esforço e o trabalho que desenvolvo com o meu marido”.
“Os nossos políticos dizem que as pessoas têm de ter uma morte digna e eu pergunto: então porquê ter uma morte digna e não uma vida digna? Porque se ajudarem as pessoas a terem uma vida digna, quando vier a morte, que é certa para todos, ela será digna também”, questiona Fernando.
“Se o nosso Governo quisesse aproveitar a nossa capacidade tinha muita gente que quer ser útil. Eu, por exemplo, não mexo os braços e as pernas. Tenho força no tronco e mexo os olhos. Eu só com os olhos consigo fazer telefonemas, mudo canais de televisão, podia atender público e ajudar o país. Nós somos pessoas úteis.”
Conceição, mãe de um jovem com deficiência profunda
Estava grávida do quarto filho quando numa viagem de carro passou num buraco, “o solavanco descolou a placenta, a criança ficou sem oxigénio para o cérebro, teve múltiplos AVCs e órgãos em falência. Fui submetida a uma cesariana de emergência, ele nasceu sem batimentos. Nasceu morto e tudo o que vem daí para a frente é vida!”
Vive com dificuldades, mas não tem dúvidas de que o filho é feliz e traz à família muitas alegrias: “o David é uma criança feliz, mais que eu que tenho uma máquina de calcular na cabeça”.
Conceição não trabalha, tem mais filhos e o marido também tem uma deficiência.
Ela sabe melhor que ninguém que a tarefa é árdua e fica incomodada com movimentos sociais e políticos que abrem portas à morte, diz que a vida não tem de ser perfeita e que há muita vida e felicidade para além desse estereotipo.
“Ele tem uma vontade vincada e sabe o que quer, simplesmente só não comunica e verbaliza da mesma forma que nós. É uma pessoa que ali está, apenas está condicionada”. Com carinho revela que aprendem a comunicar “um com o outro e isso consegue-se com muita convivência, intimidade e muito amor. É cuidar e zelar incondicionalmente por ele”. Tem o filho vivo com ela e isso dá outro sentido à sua vida, explica.
Rui, tumor maligno no cérebro
Pai de quatro filhos, trabalha com a mulher. Rui conta como foi apanhado de surpresa pela doença: “quando recebi o diagnóstico agarrei-me sempre à preocupação que tinha com a família. Vivi momentos muito difíceis”.
De sorriso nos lábios, Rui afirma: “eu era um rapaz saudável sem problemas de saúde. Em 2015 comecei a ver a dobrar, mais tarde descobriu-se um tumor com expansão para o cérebro, um tumor cancerígeno que nasceu na nasofaringite e subiu ao cérebro”, acrescenta, “os tratamentos foram duros, o corpo gretava e sangrava muito. Fiz julgamentos com a complacência de magistrados e funcionários judiciais excecionais, é nestas alturas que se descobre o coração das pessoas”.
Confessa que nunca teve medo de morrer, mas que o preocupava deixar a família desamparada. Foi esse o grande mote para se agarrar à vida e nunca desistir. “Sinto que foi a minha necessidade de trabalhar que me deu também força. Esta lógica de utilidade e a necessidade que me fez sentir útil e necessário. Lembro-me de fazer o julgamento durante um dia inteiro com uma bolsa de quimioterapia à cintura. Isso faz-nos dizer: eu consegui!”.
Rui recorda uma das situações que jamais vai esquecer. “Tive o caso de um homem que andava fugido e se queria entregar. Eu não me conseguia levantar. Combinei ir buscá-lo, mas não conseguia conduzir e não tinha força. Combinei com um amigo e fomos buscá-lo e depois fiz o julgamento”. É com orgulho que sublinha: “tive muitos amigos que não diziam não a nada”.
Garante nunca ter pensado no suicídio ou em pedir ajuda para colocar fim à vida, mas lembra-se “de um dia ter decidido viver”. “Há nisto muito de anímico. As pessoas são fora de série para nos apoiar e dar força. Eu tenho 1,83 metros e cheguei a pesar 48 quilos. Não é fácil: o cheiro, a cor, as feridas, havia dor, mas eu era muito medicado. Era mais a fraqueza e a inexistência pessoal que me derrotava”.
Destaca o apoio familiar, dos amigos, dos profissionais dos tribunais como imprescindível “na missão de viver” e deixa um elogio ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) que ainda tem pessoas dedicadas e com sorriso de esperança. “Eles têm tempo na medida do caos que aquilo é. Gerem as coisas de forma heroica. Sempre que eu precisei eu tinha sempre alguém! Tentam fazer o possível. Recordo uma enfermeira que estava sempre sorridente e bem-disposta, ninguém está sempre bem-disposta e ela estava”, descreve.
Margarida, esclerose múltipla
Descobriu a doença aos 15 anos quando teve dormência nas mãos, não conseguia escrever, apertar botões e tinha muita dor nas costas. Fez muitos exames até chegar ao diagnóstico. “Sentia o peso das limitações. Não posso fazer muitos esforços. Eu sou diferente dos outros, mas até há bem pouco tempo achava que era igual. Olho o futuro com consciência, gostava muito de fazer determinadas coisas, mas sei que não posso porque não sou capaz”, confessa Margarida.
Teve cedo de aprender a lidar com a doença e os sintomas. “Eu não tinha consciência do que era. O processo foi gradual e aprendi a viver com a doença. Tive sintomas na visão e já passei por vários medicamentos. Houve uma altura em que tinha de levar comigo a injeção, fosse para onde fosse”.
Confessa que a esclerose a assusta um pouco, mas diz que não vale a pena valorizar esse sentimento. “A medicina está muito avançada e há vários tratamentos. Já se evoluiu muito. Não havia nada. Agora atenuam-se os sintomas, sei bem que não há cura”.
Apesar do medo que já sentiu diversas vezes não tem dúvidas de que “é importante dar dignidade durante a vida e não facilitar a morte”.
“Acho que nunca vou pensar na morte como solução. A vida é a solução, dar dignidade e cuidados de saúde, isso sim! A solução é investir no Serviço Nacional de Saúde.”
Margarida sublinha que “o desafio desta doença é a invisibilidade dos sintomas” e lamenta que existam muitos doentes incompreendidos por isso mesmo. Margarida procura emprego e só pensa em aproveitar a vida.