Seis meses de Brexit vistos da Alemanha. “Ninguém vai pôr crocodilos no Canal da Mancha”
23-12-2016 - 10:20
 • Guilherme Correia da Silva, em Bona

Alemães ouvidos pela Renascença vêem mais consequências negativas do que positivas no Brexit. Mas uma coisa é certa: a influência britânica está no país para durar.

Seis meses depois do referendo que ditou o Brexit:


Por entre o emaranhado de ruas de Colónia, há um bastião anglo-saxónico. É dia de trabalho e, de manhã, há poucas pessoas no centro da cidade. Só um grupo de músicos e meia dúzia de transeuntes desafiam o frio matinal. Um ou outro entram na “English Shop”.

A montra exibe dezenas de caixas com “crackers” de Natal (uma tradição inglesa: uns tubos em forma de rebuçado que têm lá dentro coroas de papel, uma piada escrita num papelinho e pequenos presentes). À frente dos “crackers”, está colada no vidro uma mensagem em letras garrafais: “A Grã-Bretanha pode ter saído da União Europeia, mas uma pequena parte da Grã-Bretanha sobrevive aqui.”

Passaram seis meses desde que os eleitores do Reino Unido pediram para sair da União Europeia. O dono da loja inglesa, Alexander McWhinney, ainda está em choque. “A política parece tornar-se num jogo onde quem grita mais alto e de forma mais escandalosa é ouvido. Estou dividido, como escocês, como britânico e como europeu. A única coisa que posso dizer, com toda a certeza, é que vou ficar”, afirma McWhinney, que estudou Engenharia e veio para a Alemanha há quase 30 anos. Trabalhou na indústria automóvel, mas entretanto abriu a loja inglesa porque tinha saudades dos produtos da terra.

Na loja, há de tudo um pouco: compotas, chá preto e feijão enlatado para o pequeno-almoço. Vendem-se revistas inglesas, postais com a Rainha, fotografias do príncipe Guilherme e de Kate Middleton, além dos típicos mealheiros com os autocarros de dois andares de Londres. Tudo “very British”, tudo importado.

McWhinney teve sucesso na Alemanha: já há “English Shops” em quatro cidades e o empresário prepara-se para abrir mais. Nem ele, nem ninguém, sabe ao certo o que acontecerá quando o Reino Unido sair da União Europeia. Mas o escocês duvida que, no futuro, passe a ter de pagar taxas alfandegárias pelos produtos que importa.

Diz que isso já passou de moda: “Cada vez se fala mais em acordos comerciais para acabar com os impostos de exportação entre países. Erguer barreiras comerciais seria uma forma de punir a Grã-Bretanha, mas isso não interessa à Europa.”

Perder ou não o “passaporte europeu”

Já o economista alemão Markus Demary defende que, quanto a isso, não poria as mãos no fogo antes de Bruxelas e Londres se sentarem à mesa.

“Provavelmente [os britânicos] vão querer ter os benefícios económicos sem as obrigações em relação à União. Mas aí, provavelmente, a União dirá que não, e voltará a haver barreiras, porque ambas as partes terão de chegar a um compromisso”, prevê o economista.

Isso pode significar más notícias para a Alemanha. O Reino Unido é um dos maiores parceiros comerciais dos alemães - é o terceiro país para onde a Alemanha mais exporta, depois dos Estados Unidos da América e da França.

Em cada sete carros produzidos na Alemanha, um vai para o Reino Unido. A Vauxhall (afiliada da alemã Opel), a Volkswagen e a BMW são das marcas de carros mais vendidas em território britânico. Além disso, a BMW, por exemplo, também tem fábricas no Reino Unido, onde trabalham oito mil pessoas. Os Mini são produzidos em Oxford.

Depois do referendo de Junho, o grupo BMW disse que não esperava um grande impacto do Brexit nas suas operações, a curto prazo. Já a longo prazo, segundo a BMW, ainda é cedo para saber o que vai acontecer - o Reino Unido e a União Europeia ainda têm de debater as regras para o futuro.

“Primeiro, as empresas vão esperar, antes de tomarem grandes decisões - antes de começarem a mudar as fábricas de sítio ou a fechar escritórios”, diz Demary, para quem outro grande ponto de interrogação é o que acontecerá ao sector financeiro. Será que os bancos de Londres se vão mudar de malas e bagagens para outros sítios?

“Se perderem este passaporte europeu, os bancos que quiserem continuar a ter acesso à União terão de abrir aqui uma filial. Isso sairá caro. Mas possivelmente também sairão de Londres - para Frankfurt, por exemplo, ou para Paris, Dublin ou até Amesterdão”, responde o economista.

Para o politólogo Tilman Mayer, no final, os membros da União Europeia e o Reino Unido terão de se encontrar a meio caminho. “A Alemanha não está interessada que a Grã-Bretanha se distancie muito do continente. A liberdade para se escolher o país onde se quer trabalhar é uma condição ‘sine qua non’ na União, e isso é algo que a Grã-Bretanha prefere não ter. Mas, para que continue a haver uma relação próxima, será preciso chegar a um compromisso quanto a este ponto”, diz.

Tilman Mayer acredita que, sem o Reino Unido, a Alemanha ficará mais isolada na União Europeia. Reino Unido e Alemanha são adeptos de “apertar o cinto” para controlar os défices dos Estados. Nesse ponto, andavam sempre de mãos dadas.

"Eles continuam a ser europeus"

Como muitos alemães, Iris Budweth ficou chocada ao ouvir que os eleitores do Reino Unido tinham decidido sair da União Europeia. Mas recusa-se a dizer “adeus” aos britânicos.

“Ninguém vai pôr crocodilos no Canal da Mancha. Eles continuam a ser europeus”, diz Budweth, que é presidente do Clube Oxford, em Bona - uma sociedade criada em 1971 para reforçar a parceria entre as duas cidades. A parceria começou depois da II Guerra Mundial. Oxford apoiava Bona.

“Era ajuda económica e outro tipo de ajuda: [Oxford] acolhia crianças que ficavam a viver no campo durante semanas, ou meses, dependendo do seu estado de saúde”, recorda Iris. Mais tarde, a ajuda terminou, mas a parceria continua. E nem o Brexit a vai derrubar, afirma Budweth.

Quanto muito, quando for a Inglaterra no futuro, a presidente do Clube Oxford terá apenas de preencher mais alguns papéis: “Já lá ia antes dos britânicos entrarem na União Europeia. Visitei o país muitíssimas vezes depois de entrarem e continuarei a visitar depois de saírem. Se precisarmos de um passe, logo vemos na altura.”

À porta do Clube Oxford, em Bona, está outra coisa que fica na Alemanha, apesar do Brexit: uma cabine telefónica, tipicamente inglesa - vermelha e com janelinhas aos rectângulos. A cabine, oferecida por Oxford, é uma biblioteca de rua. Quem quiser pode ir lá buscar livros e trocá-los por outros.

Um dos que lá está numa estante, com uma capa azul, é “O Amante de Lady Chatterley”, um romance escrito no início do século XX pelo escritor inglês D. H. Lawrence. E o livro começa assim: “A nossa era é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a encará-la tragicamente.”