Podemos falar de suicídio (não de eutanásia)?
09-03-2018 - 06:34

Nos EUA há cerca de 30 mil homicídios por ano, mas há 44 mil suicídios. Porque é que os homicídios têm 99% da atenção mediática, política, narrativa, cinematográfica, televisiva, literária?

Para mim é incompreensível: fala-se do suicídio a pedido (eutanásia) mas não se fala do suicídio propriamente dito; há uma avalanche mediática que exige às pessoas uma opinião sobre a eutanásia, mas, ao mesmo tempo, é mantido o código de silêncio sobre os suicídios.

Fala-se do senhor que exige que o matem no hospital, mas não se fala do senhor que se atira da ponte ou que se enforca na árvore. Dizem-me que não se fala deste suicídio normal porque a discussão pública pode gerar mais casos. Julgo que essa tese não faz sentido. Apesar deste código de silêncio, a taxa de suicídio está a subir um pouco por todo o lado. Mais: se é essa a razão de ser do silêncio, porque é que se fala tanto de eutanásia? Tamanha campanha mediática em redor da eutanásia não é em si mesmo um estímulo aos suicidas? Portanto, se querem falar de eutanásia, também temos de falar de suicídio. Por todo o ocidente, a taxa de suicídio está a aumentar entre adolescentes e jovens. Da mesma forma, o suicídio entre os trabalhadores brancos e pobres é uma catástrofe crescente. Os homens americanos e ingleses entre os 20 e os 60 anos têm no suicídio a grande causa de morte. Podemos ouvi-los?

Como diz Andrew Solomon no livro “O Demónio da Depressão”, existe a ideia generalizada de que a depressão é uma chaga de classe média ou de ricos. Os próprios pobres partilham esta ideia. Sim, os trabalhadores mais pobres, sobretudo homens, vêem a depressão como vêem o carrão ou as férias da neve: uma marca do status da classe alta. É por isso que estes operários ou ex-operários acabam por se afogar no álcool e nos códigos de masculinidade que não contemplam a fragilidade e a confissão dessa fragilidade.

A violência doméstica e o suicídio (uma tragédia sobretudo masculina) resultam desta prisão que é o código de masculinidade do homem de colarinho azul. Conheço-o desde a infância, tentei falar dele no livro “Alentejo Prometido”. JD Vance fez o mesmo em "Lamento de uma América em Ruínas". Esta cultura braçal, física e corporal tem dificuldade em aceitar a ideia de sofrimento ou da doença mental; só aceita a dor física; a dor mental é vista como um sinal de fraqueza, de feminilidade, de homossexualidade. És um maricas! És uma menina! És um merdas! Esta tragédia - como volta a salientar Andrew Solomon - é depois reforçada pela soberba das classes altas, que se julgam donas exclusivas da dor psíquica, que continuam a pensar que o pobre é demasiado rude para aceder ao sofrimento psíquico; é como se a depressão e o suicídio fossem consequências da sofisticação intelectual e social de alguns e não condição humana partilhada por todos.

Nada disto faz sentido. É nas classes mais baixas que encontramos a maior incidência de doença mental e suicídio. Não nos devia surpreender. A miséria mantém as pessoas sobre permanente pressão; a pobreza mantém o indivíduo mais perto da linha de água que separa a racionalidade ponderada do estado da natureza. O dinheiro não compra felicidade, mas compra uma elevação acima do estado da natureza, cria uma rede de previsibilidade que salva o indivíduo da imprevisibilidade que é viver na pobreza. Vivemos assim numa enorme contradição: a classe social mais propensa à depressão e ao suicídio é também aquela que não tem narrativas que a defendam dessa mesma propensão suicidária; a empatia pelo pobre branco que se mata não existe nem na sua classe nem nas classes mais altas, que reservam a empatia sofisticada para as “minorias”.

Este tema não é um tema geral ou abstracto, não é um tema para um debate moral distanciado da realidade. Quando olhamos para a força eleitoral de Trump, Le Pen e do Brexit, vemos lá estes homens: operários ou ex-operários que se sentem perdidos entre tempos e narrativas, que se sentem esquecidos e desprezados.

Falar de suicídio não é só um imperativo moral, é um imperativo político e civilizacional para o aqui e agora; devemos ouvir estes homens porque é a coisa mais cristão que podemos fazer e porque essa empatia pode ajudar-nos a sair deste mal-estar civilizacional. Podemos falar então de suicídio? Nos EUA há cerca de 30 mil homicídios por ano, mas há 44 mil suicídios. Porque é que os homicídios têm 99% da atenção mediática, política, narrativa, cinematográfica, televisiva, literária?