O que ao povo se proibe, mas aos deputados se permite
22-04-2020 - 20:19

Se não fosse para proteger a ‘Vida’, por que razão estaríamos quase todos confinados com regras que nos privam do contacto social, do trabalho habitual, da liberdade de circulação, da liberdade de culto e até de um último adeus - digno e merecido - a quem morre? Em momentos como este, os exemplos dos órgãos de soberania são cruciais.

Não me incomoda nada que se celebre o 25 de Abril. Pelo contrário. As datas que definem a nossa identidade e cultura como povo devem ser celebradas. E já agora, bem celebradas.

Nessas celebrações (que não devemos descurar) é indispensável passar às novas gerações o significado e a substância daquilo que festejamos, seja o 1º de Dezembro, o 25 de Abril ou muitas outras datas da nossa história.

O processo iniciado em 25 de Abril de 1974 não foi um mar de rosas. Longe disso. Alguns dos que agora o querem celebrar em força na Assembleia da República, estiveram prestes a comprometê-lo. Quiseram reservar para uns poucos, a liberdade que em 1974 chegara para todos. Pretenderam instaurar regimes, cujos muros só viriam a cair quinze anos mais tarde.

Agora não pensam como então pensavam? Tanto melhor. E isso é bom para o país. Mas, na altura, valeram militares, como o ex-presidente Ramalho Eanes. Valeram nomes como Mário Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral ou Adelino Amaro da Costa. E sobretudo valeu o povo que, nas ruas primeiro e nas urnas depois, fez valer a sua vontade. Sem isso, a história teria sido outra. E teria sido bem pior.

Quarenta e seis anos depois, Portugal vive numa democracia, de matriz ocidental. E não numa democracia ‘popular’, do género soviético ou de sabor maoísta.

O atual regime democrático tem defeitos? Certamente que sim. Mas, como dizia Churchil, ainda não se encontrou um regime menos imperfeito para nos governar.

Acontece que estamos a viver um momento atípico, em Portugal e no mundo. Quando se decretam estados de emergência ou de alarme em tantos países quase em simultâneo, significa que há um choque global.

As pessoas e as instituições obrigaram-se a respeitar medidas de exceção. Tudo isso, em nome de um bem maior, chamado ‘Vida’.

Se não fosse para proteger a ‘Vida’, por que razão estaríamos quase todos confinados com regras que nos privam do contacto social, do trabalho habitual, da liberdade de circulação, da liberdade de culto e até de um último adeus - digno e merecido - a quem morre?

Em momentos como este, os exemplos dos órgãos de soberania são cruciais.

O Presidente da República e o Governo têm procurado dar o testemunho certo, em sintonia com um país semi-paralisado pela pandemia e pelo receio dos efeitos colaterais de natureza social, económica, até política. Mas a Assembleia da República nem por isso.

Não, não se trata sobretudo nem apenas das celebrações do 25 de Abril. Trata-se de saber, antes de mais, por que motivo o parlamento se continuou a reunir num espaço fechado, em número e em circunstâncias que se proíbem a muitas empresas e instituições, durante a pandemia?

Desde que a própria Assembleia da República aprovou o estado de emergência, não seria expectável que tivesse adoptado um modo de funcionamento compatível com o diploma que acabara de aprovar? Houve quem o propusesse, mas em vão.

Não teria sido possível o parlamento continuar a funcionar através do reduzido número de pessoas que compõem a Conferência de Líderes e a Comissão Permanente da Assembleia da República?

A democracia ficava limitada e em perigo? Mas não é isso que sucede, durante dois meses ou mais, no período de Verão?

A democracia e a liberdade não são propriedade ou monopólio de ninguém - nem da esquerda nem da direita. E do mesmo modo, os funerais, em si, não são de esquerda nem de direita. São pessoas que por doença ou por outros motivos chegaram ao fim da vida. São famílias duplamente arrasadas: pela perda de familiares e pela impossibilidade de os acompanhar de um modo digno, na hora da morte.

Quando nos funerais se reduzem as presenças a meia-dúzia de pessoas, pode o parlamento continuar a comportar-se de modo distante - para não dizer arrogante - face à generalidade da população?

Como se explica às pessoas que não podem acompanhar os seus mortos, que aos deputados se permite, aquilo que ao povo se proíbe?

Em plena pandemia, as celebrações do 25 de Abril ou do 1º de Maio fazem-se, mas adaptam-se às mesmas circunstâncias em que quase todos vivemos e trabalhamos. Não se podem fazer contra o povo ou apesar do povo. Porque é a vida do povo que dá sentido às datas. E a vida do povo está acima de todas elas.