Quão em perigo está o Estado de Direito na Polónia ?
Está certamente devastado. E esta não é apenas a minha opinião. Temos vários acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em Estrasburgo e do Tribunal de Justiça da UE no Luxemburgo. O princípio dos "check and balance" ( freios e contrapesos) está devastado. Os políticos literalmente assumiram o controlo dos tribunais e destruíram a independência do poder judiciário. Tudo o que temos agora é a independência interna dos juízes que são fortes, resistentes e não desistem. Mas o sistema, como tal, está realmente demolido.
Então o Estado de Direito não existe ?
Não existe no papel. Se vir, a Constituição e todas as instituições nela contidas foram atacadas pela lei. O Tribunal Constitucional tem sido agora um órgão totalmente político, a agir diretamente sob as instruções dos políticos. Temos uma sentença também no tribunal de Estrasburgo a dizer que os juízes são nomeados ilegalmente. Veja a lei do aborto. É o primeiro e mais vívido exemplo disso, do quanto eles assumiram o controlo do Tribunal Constitucional e atacaram o Supremo Tribunal de Justiça.
Eles criaram duas novas câmaras com novos juízes para disciplinar e para acusar juízes que não estão satisfeitos com as chamadas "reformas" deles. Eles criaram uma nova câmara no Supremo Tribunal de Justiça que vai dizer se as eleições são válidas ou não. Criaram esta câmara a partir do nada, com as novas regras, por pessoas ilegalmente nomeadas. E esta foi novamente a decisão dos tribunais europeus.
Mas isso afeta a base do processo democrático e estas eleições ?
Sim. Na verdade, as eleições estão ameaçadas e já temos esta câmara que foi nomeada ilegalmente e serão eles a dizer, no final, se as eleições foram válidas ou não, porque é competência do Supremo Tribunal e eles aí têm a sua "gente". Obviamente têm a comunicação social pública que trabalha para o governo. Assim, as eleições não são igualitárias, porque com um "amigo" tão forte de um lado, não se pode dizer que as eleições são equilibradas.
Acredita no resultado das próximas eleições?
Acredito que vamos vencer. Acredito no povo polaco. Acredito que no nosso ADN de liberdade e respeito por ele. Existem certos valores e eles não vão acreditar no governo, que quer o seu próprio bem. Foram oito anos horríveis, em circunstâncias tão terríveis como a violação da lei para as mulheres, dos direitos das minorias, tudo.
Mas o resultado das eleições está em jogo, pelo que me diz, já que a palavra final é de um organsimo que está controlado. Portanto, confia na vontade do povo polaco.Mas essa confiança pode ser traída pelo sistema. É isso?
Sim, tenho medo disso, porque se o resultado revelar vantagens com margens muito curtas, não sabemos o que eles vão decidir. Houve razões por detrás da nomeação de um novo órgão que aprovará as eleições.
O que pode acontecer nesse cenário?
Se isso acontecer, se nós ganharmos as eleições e a câmara disser que o resultado não é válido, as pessoas irão definitivamente para as ruas. Vai ser um protesto interno massivo, com certeza. Espero que isso não aconteça e que essas pessoas não trabalhem para o governo a esse ponto. Mas quando me pergunta se o Estado de Direito está destruído, este é um dos exemplos porque digo que o sistema foi atacado e destruído. Espero um protesto massivo se eles tentarem defraudar o processo eleitoral. Aí sim, definitivamente, o povo polaco vai saber disso e não o vai aceitar. Se eles ganharem de forma justa - o que é uma ironia porque o processo já não é justo -teremos de aceitar isso.
E nesse caso como vão fazer oposição a um governo baseado na vontade popular?
Bem, não quero nem pensar nisso, porque nem consigo imaginar o que vai acontecer a seguir. Acredito que eles vão destruir os tribunais até ao fim, tudo o que resta, sem falar nos direitos das mulheres. Vamos estar numa guerra total com a União Europeia. Sabemos da enorme discussão entre a Polónia e a UE sobre o poder judicial independente. Tivemos sanções massivas do Tribunal Europeu de Justica que levaram ao congelamento de fundos.
Se eles ganharem de novo, eu diria que há até o risco de eles quererem fazer o "Polexit" - a saída da Polónia da União Europeia. Os partidos de direita mencionaram isso de vez em quando, de que "talvez não precisamos da UE, talvez sejamos capazes de ficar apenas por nossa conta".
Há algo mais que a Europa possa fazer?
A Europa fez muito em todos os processos por infracção no Tribunal de Justiça. Tivemos 5 processos de infracção. Eles usaram essa ferramenta. Utilizaram ainda o artigo 7 do Tratado da União Europeia, que não é uma ferramenta eficaz. Eles congelaram o fundo de recuperação, fizeram tantas resoluções. Disseram que iam mandar uma missão de observação, porque temos medo das eleições. Tivemos o Sistema Pegasus na Polónia, atacando as pessoas mais importantes, advogados , principais políticos responsáveis pela campanha eleitoral. Depois do relatório, a UE disse que ia enviar a missão de observação. Foram lentos, as ações poderiam ter sido tomadas dois anos antes, mas penso que a UE nunca esperou que isso pudesse acontecer. Os casos da Hungria e Polónia eram novos para uma UE que foi criada de uma forma diferente e agora têm dois países que estão literalmente em direções opostas.
Tendemos a colocar Hungria e Polónia no mesmo cesto. É justo fazê-lo?
Sim, até certo ponto. Kaczynski está literalmente a seguir os passos de Orban. O padrão é o mesmo. Começa sempre pelo Tribunal Constitucional, é sempre o primeiro. Foi exatamente o que aconteceu na Hungria. Em segundo, vem o ataque às liberdades das minorias e aos direitos humanos, às mulheres e aos movimentos LGBTQ. Atacam os tribunais. Mais uma vez, este é o mesmo padrão de ataque aqui e lá e o último caso é o processo eleitoral.
Fizeram mudanças muito parecidas. Assumiram o controlo da Comissão Nacional para as eleições, onde têm a sua gente e mudaram as regras como fez Orban.
A diferença é que, na Hungria, a Igreja Católica não é tão forte. Na Polónia, esse é um factor muito importante. Já na Polónia, não temos o sistema de oligarquia que na Hungria é muito forte. Na Hungria, têm maioria constitucional para fazer alterações e tinham razões legítimas para mudar a lei. No nosso caso, mudaram a lei, violando a Constituição polaca.
Para algo mudar, é preciso uma mudança de partido ou existe uma toda uma cultura que há a mudar?
Muito boa pergunta. Em primeiro lugar, isto não vai desaparecer muito facilmente, porque o dano é muito grande. O processo de reversão vai ser longo e há muito a fazer. Obviamente, há partidos de oposição mas não vão criar um país muito bonito com um passe de mágica. Vamos vigiar os partidos de oposição tanto quanto fazemos agora com os partidos que governam. É isso que os políticos fazem, assumindo o máximo de controlo que puderem. Por isso temos que estar muito preocupados e atentos a todos eles. Mas a Polónia agora está dividida em duas metades, em que uma delas vota no PIS ( Partido da Justiça ) e a outra prefere os partidos da oposição.
Acho que a oposição aprendeu a lição e entendeu as transferências civis que o PIS fez ganhar as eleições. Em primeiro lugar, criaram este “magnífico” projeto de transferências sociais que literalmente deu às pessoas dinheiro para os seus bolsos, com um valor por criança na família.
Isso para si é mau ?
Não, acho que isso é muito importante e ninguém quer retirar isso. Mas eu acho que, finalmente, os partidos da oposição entenderam que não é só sobre dinheiro, mas também sobre dignidade humana. Eles disseram às pessoas que os seus problemas eram importantes para eles e entregaram 500 zlotys a cada um. Não vão retirar o dinheiro, ninguém vai mudar isso. Mas acho que a oposição aprendeu a lição e que agora veem o país inteiro, viajando para pequenas cidades, aldeias. Donald Tusk esteve literalmente numa cidade diferente todos os dias. Então acho que eles aprenderam a lição que não sabiam há 4 ou há 8 anos .
Tem uma grande intervenção em tribunais com a sociedade civil, com ONGs. De certa forma , também tenta mudar a política por vias judiciais e legais. Não é o mesmo que o regime faz ao alegadamente usar o poder judiciário para seu beneficio político?
Este é um jogo realmente emocionante para nós, advogados dos direitos humanos. Isto é o que fazemos . Nós apenas “colocamos os pés nessas portas” e avisamos que vamos verificar isto e aquilo, neste e naquele tribunal. É por isso que os tribunais têm que ser independentes, não movidos pela vontade dos próprios políticos. É isso que fazemos. Usamos todos os instrumentos possíveis que pode imaginar no direito da União Europeia, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, para travar estas reformas. E vamos fazê-lo também para reverter as reformas, como qualquer outro governo que esteja em vigor na Polónia.
Mas essa abordagem tem alguns limites.
Não sei os limites. Cabe aos tribunais. É assim que eu vejo isto, como advogada de direitos humanos. Eu atiro uma "batata quente" para o tribunal e vejo o que eles vão fazer com ela, se é das suas competências. Esse é o meu trabalho: verificar até onde posso recorrer de cada questão ou contestar a interpretação do direito da União Europeia, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. É isso que fazemos. E o limite cabe aos tribunais independentes dizer.
Mas começou a falar da resistência dos juízes num sistema não independente de direito. Pode dar-nos exemplos dessa “resistência dos juízes”?
Sim. Igor Tuleja é o exemplo mais vívido e consta de relatórios de tantas ONGs em todo o mundo. Foi um juiz que foi suspenso por quase 2 anos e meio por causa de uma sentença contra o governo. Ele passou pelo inferno, mas permaneceu independente.
Qual é o papel deste tipo de juízes nesse sistema contra o qual está a lutar ?
Embora eles sejam internamente independentes e simplesmente sigam a Constituição e as decisões dos tribunais europeus, eles têm vários processos disciplinares. Só porque aplicam a lei e executam as sentenças dos tribunais da UE, eles literalmente são suspensos ou têm problemas de regime disciplinar. É o que está a acontecer na Polónia nos últimos cinco ou seis anos. Esses juízes sacrificaram-se muito. Eu contesto o sistema, principalmente em tribunais europeus e por isso eles não estão ligados ao sistema polaco de forma alguma.
Existe uma estratégia certa para fortalecer a sociedade civil num país, neste caso chamado Polónia?
O maior sucesso que temos na Polónia é a sociedade civil que temos agora. Jamais esperaria que tivéssemos uma sociedade civil tão forte e surpreendente. A chave é não brincar com o seu ego, não pensar que se é o mais importante no seu trabalho e ter que brilhar. Às vezes estamos na primeira fila, outras vezes estamos na traseira, porque alguém está mais apto para o trabalho. Conversámos muito durante estes 6 anos, conhecemos muita gente, organizámos muitas reuniões e estamos em constante contato. Assim existem vários grupos de ONGs, que trocam e-mails ou que se reúnem regularmente. Sabemos realmente quem faz o quê e realmente apoiamo-nos uns aos outros. Por exemplo, a sociedade LGBTQ está a apoiar as mulheres, as mulheres apoiam os juízes independentes e os juízes independentes apoiam refugiados e ONGs. É como uma cadeia de ajuda. E isso é incrível. Nunca esperaria que fôssemos tão fortes e resilientes.
E qual foi a força motriz?
Não sei o que aconteceu. Simplesmente aconteceu. Encontrámo-nos numa situação muito difícil e começámos a agir. No início, nós não pensávamos quanto tempo iria durar ou se devia ser estruturado ou se deveríamos criar uma ONG. Nós simplesmente começámos a agir e ajudar uns aos outros.
Isso é um movimento de elite ou de base social ampla?
É um movimento social de base alargada. Em cidades e aldeias realmente pequenas, há ativistas incríveis a lutar pelos seus direitos, pelos direitos humanos pela independência do poder judiciário. Não é um movimento de alguém que anda sentado em cafés, não é um movimento de advogados. Viajámos muito por todo o país. Vamos a acampamentos para nos encontrarmos com jovens. Passo muito tempo a viajar literalmente por toda a Polónia e encontro-me com pessoas e, especialmente, com ativistas locais.
É por isso que espera uma transferência desse movimento para a arena política?
Acho que sim. Gostaria que toda a energia que criámos em todo o país fosse agora vista em Outubro.
Estive na Polónia, quando começou a invasão em grande escala da Ucrânia e, nessa altura, começámos a ver a forma como a sociedade polaca acolhia refugiados ucranianos. Não encontrei nenhum cidadão polaco que não me dissesse que estava surpreendido com isso. Também ficou surpreendida e porquê?
Fiquei surpreendida, porque parte do meu trabalho como advogada de direitos humanos passa por casos de refugiados. Estive muitas vezes na fronteira bielorrussa onde as coisas nunca foram boas. Fiquei bastante surpreendida com o facto do povo polaco ter sido tão aberto, aceitando todos os refugiados que chegaram. Foi um momento muito bonito, porque pela primeira vez em muito tempo, não importava se se votava no PIS ou na Plataforma Cívica. Havia um objetivo comum de ajudar essas pessoas e acho que ficámos surpreendidos com a escala. O povo polaco passou por coisas horríveis durante a guerra e, por isso, também é algo que está nos nossos corações. Fomos literalmente abandonados na Segunda Guerra Mundial e ninguém ajudou o povo polaco.
Acho que assim que viram a guerra literalmente do outro lado da fronteira, os polacos perceberam que não havia outra coisa a fazer senão ajudar essas pessoas.
Mas eles aceitam os ucranianos porque são muito parecidos na cultura, na religião, na aparência, com a língua.
Isso leva-me a outra questão. O muro e a situação na fronteira com a Bielorrússia não são a verdadeira face das políticas migratórias na Polónia?
Sim, sempre foi assim. A fronteira bielorrussa nunca foi perfeita. Eu estava lá em 2017 e vi tantas violações da lei. Tentava ajudar refugiados e eles realmente eram mandados para trás, embora devessem entrar no país. E é isso que está a acontecer agora. Só que agora as pessoas estão literalmente a morrer numa floresta. E a política do governo é muito forte nisto. Eles não deram nenhum passo atrás nisso desde aqueles anos. Acreditavam que isso faz parte da guerra, mas, como advogados de direitos humanos, vemos muitas maneiras de poder ajudar essas pessoas a verificar a sua identidade e literalmente ver quem está realmente a entrar no país - ver se há terroristas como dizem - naquelas crianças pequenas, mães e pais, gritando por ajuda. É uma vergonha o que está a acontecer na fronteira bielorrussa. Penso que a situação ucraniana ajudou a cobriu essa face da Polônia.
Mas vai haver um referendo sobre a migração.
Como provavelmente já leu, o referendo é uma fachada. Eles estão a fazer isso só para jogar com cartas muito conhecidas. A cada eleição eles criam um inimigo. Os refugiados eram o inimigo há alguns anos. Diziam que vinham para o nosso país e traziam doenças com eles. Depois eram as sociedades LGBT, as mulheres, os juízes. Eles visam sempre um grupo e criam toda uma história sobre isso. Temos novamente a questão dos refugiados, porque há a questão da fronteira. E eles jogam com essa carta também, porque há uma guerra, pelo que é como brincar com a segurança do país. E é isso que eles fazem. Eles dizem que vão tornar a Polónia segura, que ninguém vai entrar no país.
Diz-nos que tem muito trabalho sobre refugiados e que essa situação é muito grave. Isso significa que a mudança pode acontecer na sociedade. Observei várias ONGs locais a trabalhar com eles com assistência jurídica de advogados e assim por diante. Pode ser feito mais, juridicamente falando, por essas pessoas que estão a sofrer nessa situação?
Acho que os advogados fizeram absolutamente tudo por eles. Tentaram encontrá-los na floresta, usando o poder de os representar em Estrasburgo. Fizemos tantas coisas, usámos absolutamente todas as ferramentas legais. O que não é muito, obviamente, porque não tivemos tanto apoio da UE que , para ser honesta, por causa da guerra na Ucrânia, não foi realmente ativa e vocal na fronteira bielorrussa.
Mas essas discussões estão em curso há muito tempo sobre migração, pacto de migrações e asilo. Acha que a resposta está numa legislação mais forte em termos europeus ?
Podemos ter muitas ferramentas jurídicas, mas eles não as respeitam. Podemos simplesmente ir a tribunal, ganhar, podemos ir a Estrasburgo e ganhar e ficarmos com a medida provisória de que esses refugiados têm que receber ajuda médica, cobertores de comida ou tem que entrar na Polónia. Mas eles simplesmente não respeitam isso. Então, de um lado, temos muitas ferramentas jurídicas, mas por outro lado eles dizem que a sentença não é válida ou que a UE foi muito além das suas competências.
Explique-me brevemente o que faz a sua organização “Free Courts” ( Tribunais Livres)
Temos várias áreas de atuação, a mais importante das quais é, obviamente, representar os juízes perante os tribunais. Representamo-los na Europa, na Polónia, em processos disciplinares ou em todo o tipo de processos. Eu mesmo tenho agora 60 processos pendentes em Estrasburgo relativos apenas à independência do poder judicial.
Portanto é uma advogada que defende os juízes.
Sim. Se me tivesse dito isto há sete anos eu diria “você é doido!”. Também represento os juízes do Supremo Tribunal na grande câmara do Tribunal Europeu de Justiça, o que é divertido. A segunda área é a de diálogo com o povo. Ensinamos, viajamos, conversamos com as pessoas. Criamos vídeos curtos com informações. Tornamos simples as coisas complexas. A terceira área é o trabalho com as instituições da UE. Somos especialista em qualquer instituição europeia independente ou outra que queira convidar-nos como peritos para escrever relatórios.
Está portanto a tentar fazer mudanças na sua própria esfera. Consideraria transferir-se para a arena política para defender ainda mais ideias que defende?
Essa é a pergunta mais comum que recebo, especialmente antes das eleições. Mas não, porque, em primeiro lugar, eu realmente gosto de ser uma advogada. É algo em que sou boa, é um trabalho realmente gratificante e não acredito que só apertando os botões no Parlamento se pode mudar a realidade. Posso fazer várias coisas.
Pode ir para o Parlamento Europeu.
Sim, sim, eu ouço muito isso. Por enquanto, ser advogada de direitos humanos é o suficiente para mim, porque tenho muitas ideias e há muito a fazer nesta área. Realmente acho que a litigância estratégica veio e está a mudar o sistema. É isso que fazemos e somos muito necessários. Os advogados de direitos humanos são realmente importantes para a sociedade.