Isaltino compara-se a Costa como alvo da Justiça. “Se aconteceu ao PM, o que não acontece com o vulgar cidadão?”
10-11-2023 - 05:32
 • João Carlos Malta

Numa tertúlia em que foi apresentado como "figura maior", o presidente da Câmara de Oeiras esteve mais de uma hora e meia a dissertar sobre "Dignidade no exercício de funções públicas”. A quem o criticou por falar de um tema depois de ter sido condenado por crimes cometidos enquanto autarca, respondeu: "A dignidade do ser humano nunca é perdida, faz parte da natureza humana e ninguém lhe a pode tirar."

“Escrevi um livro que se chama ‘A minha prisão’ e que tem um subtítulo que diz assim: ‘E se acontecesse consigo?’. Agora, estou em condições de escrever outro a dizer: ‘Não é que aconteceu?’. Quando o primeiro-ministro se demitiu na sequência de buscas ao centro do poder executivo. Se aconteceu ao primeiro-ministro ,o que não acontece com o vulgar cidadão?”, afirmou Isaltino Morais, na noite de quinta-feira, em Oeiras, comparando a situação que viveu à que António Costa vive com o processo em que será investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Numa tertúlia em que o tema era “Dignidade no exercício de funções públicas”, organizada pelo IN-OV, o movimento partidário com que em 2021 se recandidatou à Câmara Municipal de Oeiras, o assunto até era intemporal, mas Isaltino quis pisar os terrenos da atualidade.

No Palácio dos Aciprestes, em Linda-a-Velha, Isaltino continuou ao ataque: Se, porventura, o Ministério Público ou os agentes judiciais ultrapassaram a lei, violaram a lei com o próprio primeiro-ministro, com o qual devia haver todo o cuidado...  Se não houve com o primeiro-ministro, imagino com um vulgar cidadão”, reiterou. E concluiu: “A honra e a dignidade só se tem quando não é posta me causa, justa ou injustamente."

O livro a que Isaltino se referia foi publicado em 2015, um ano depois de sair da cadeia. A sinopse revela: “Com o dedo apontado a magistrados e políticos, denunciando as grandes falhas do sistema judicial e penal, 'A Minha Prisão' é um livro contundente. É o relato da descida ao inferno de um homem com um carisma invulgar e um testemunho cru a que nem os admiradores nem os adversários de Isaltino Morais poderão ficar indiferentes."

Apresentado pelos moderadores da tertúlia como "figura maior”, “figura proeminente”, “um homem de sucesso”, Isaltino recordou - quase no final de hora e meia de monólogo, entrecortada por algumas perguntas dos entrevistadores e do público - os tempos em que estava do lado dos que ministravam a justiça. Isto para dar conta da mundividência e do antagonismo crónico que têm em relação aos políticos.

"Um magistrado, judicial ou do Ministério Público, apesar de ganhar sete ou oito mil euros por mês, muito mais do que um ministro ou um presidente de câmara, não tem secretária nem carro oficial. Eles consideram isto uma afronta"

Ainda jovem e a preparar a primeira candidatura a Oeiras, Isaltino tinha saído do Ministério Público há pouco tempo. Diz que fazia parte “dessa bolha”. Por isso, para ele, “políticos era tudo corrupto”. “Era o que pensava porque era isso que ensinavam no Centro de Estudos Judiciários. Essa era a imagem que tinha dos políticos”, lembrou.

“Um magistrado, judicial ou do Ministério Público, apesar de ganhar sete ou oito mil euros por mês, muito mais do que um ministro ou um presidente de câmara, não tem secretária nem carro oficial. Eles consideram isto uma afronta”, acrescentou.

O tema da tertúlia era dignidade na atividade política e Isaltino não deixou de acusar o toque de alguma comunicação social e de adversários políticos. As reações ao anúncio do evento levaram a que se sentisse atacado na legitimidade que tinha para falar do tema, depois de ter sido condenado a pena de prisão efetiva de prisão por crimes praticados no exercício do poder.


"Cromo da semana"

“Quando foi publicitada esta tertúlia foram feitas pelo menos três notas sobre a matéria. Uma delas no Correio da Manhã que dizia ‘cromo da semana’. O ‘cromo da semana’ era o Isaltino”, disse, provocando gargalhadas na assistência.

Na sala com uma grande imagem do Marquês de Pombal numa das paredes, e com uma lareira acesa por detrás de Isaltino e dos dois entrevistadores, estavam pelo menos 80 pessoas.

Munido de uma Constituição da República − que não largou durante toda o encontro, e de que se viria a socorrer para definir dignidade − Isaltino continuou: “Provavelmente tendo em conta as histórias e vicissitudes do passado do Isaltino, ele não pode falar sobre dignidade, não pode falar sobre corrupção, não pode falar sobre qualquer tipo de crime que afeta a sociedade, não tem legitimidade”.

Sem se deter, nomeou as duas figuras do Bloco de Esquerda: “Quase a soltar uma gargalhada, questionaram: ‘O Isaltino a falar de dignidade?’”

Para o final, estava guardado o remoque: “Quem mais belisca a dignidade são os políticos quando com frequência achincalham os outros políticos."

"Provavelmente tendo em conta as histórias e vicissitudes do passado do Isaltino, ele não pode falar sobre dignidade, não pode falar sobre corrupção, não pode falar sobre qualquer tipo de crime que afeta a sociedade, não tem legitimidade"

Para concluir, em sua defesa: “A dignidade do ser humano nunca é perdida, faz parte da natureza humana e ninguém lhe a pode tirar."

Pena de sete anos reduzida para dois anos

Em 2009, Isaltino Morais foi condenado a sete anos de prisão e a perda de mandato por fraude fiscal, abuso de poder e corrupção passiva para ato ilícito e branqueamento de capitais no Tribunal de Sintra.

Teria ainda de pagar 463 mil euros ao Fisco por um crime de corrupção passiva para ato ilícito, que envolve o licenciamento de terreno, por abuso de poder relacionado com a oferta de um terreno em Cabo Verde e também por branqueamento.

Durante a leitura do acórdão, o coletivo de juízes considerou que Isaltino Morais “revelou total ausência de consciência critica como cidadão e como detentor de cargo político”.

O tribunal considerou que, entre 1990 e 2003, o autarca utilizou os cargos políticos exercidos para auferir benefícios económicos.

Nas investigações então realizadas, o Ministério Público entendeu que, desde que Isaltino Morais iniciou funções na Câmara de Oeiras em 1986, o então militante social-democrata “recebia dinheiro em envelopes entregues no seu gabinete da Câmara” para licenciar loteamentos, construções ou permutas de terrenos.

Entretanto, o Tribunal da Relação decidiu em 2010 baixar para dois anos de prisão a pena por fraude fiscal e branquemento de capitais, anulando as penas por corupção passiva e abuso de poder, bem como a pena acessório de perda de mandato. A multa a pagar ao Estado também foi reduzida para 197 mil euros.

Isalino acabou por cumprir metade da pena, um ano, no Estabelecimento Prisional da Cerregueira, depois de ter sido detido à porta da Câmara de Oeiras.

No ano seguinte, segundo o jornal Público, o Supremo confirmou a pena de dois anos e a anulação da perda de mandato, mas voltou a fixar a indemnização em 463 mil euros.

Ainda como presidente da Câmara de Oeiras, o ex-autarca foi detido a 24 de Abril do ano passado, à porta da edilidade, depois de esgotadas todas as possibilidades de recurso, mais de 30 dezenas de diligências.

No ano passado, ficou a saber-se que Isaltino está envolvido em novo caso judicial acusado de prevaricação de titular de cargo político, oito anos depois de sair da prisão.

Durante a tertúlia fez questão de salientar que o poder e a dignidade são conceitos interligados. Daí partiu para uma reflexão a forma e magnitude do poder.

Mais poder, mais desvios

“Onde há poder pode haver desvios. Quanto maior o poder, maior podem ser os desvios. Costumo dizer que o poder absoluto corrompe. O poder exige humildade. E quanto mais tempo o tem, e essa máxima podia aplicar-se a mim próprio, à dimensão do município, quanto mais poder se tem mais autoconvencimento pode existir de que esse poder é eterno. E ele é efémero. E que com o poder se pode fazer tudo. Mas quanto maior o poder mais humildade se deve ter”, defendeu.

De seguida, Isaltino diz acreditar que há uma linha muito ténue entre aquilo que é exercer o poder em benefício dos outros ou em benefício próprio. Salientando que não se referia, neste caso, ao benefício material. “Qual é o maior bem de um autarca ou ministro? Reconhecimento”, disse, alertando que se esse reconhecimento não tiver no centro da ação o cidadão e se resumir a uma gestão de ego, “então aí já há um desvio do poder”.

Ainda sobre o tema não resistiu a revelar o seu alegado desprendimento. “O meu vício não é o poder, é o trabalho”. Não sendo um vício, Isaltino conta no currículo com nove eleições autárquicas ganhas em Oeiras e também uma passagem pelo Governo como ministro das Cidades e Ordenamento do Território.

Mais à frente, e relacionando uma vez mais o exercício do poder com a dignidade, Isaltino anteviu uma possibilidade de elogiar a gestão que faz dos dinheiros públicos. A referência surgiu ao fazer alusão a uma obra na freguesia de Porto Salvo e no facto de a câmara não ter dinheiro para a realizar.

"O meu vício não é o poder, é o trabalho"

“Quando fomos eleitos em 2017, tínhamos 80 milhões de euros no banco, mas não tínhamos projeto nenhum. Agora estamos cheios de projetos, mas não temos dinheiro. A Câmara de Sintra tem 300 milhões de euros no banco, a Câmara da Amadora 200 milhões de euros, eu prefiro a situação de ter muitos projetos e não ter dinheiro. Aí está a dignidade no exercício de funções, devemos procurar usar os recursos públicos para dar mais qualidade de vida às pessoas”, reforçou.

Tik tok e Passos Coelho

De repente, uma das moderadoras questiona Isaltino Morais sobre “a política de tik tok”. O autarca pergunta: “O quê? Não estou muito familiarizado com isso”. Ouvem-se risos da plateia.

A moderadora continua: “a edição do corta e cola ocupa o lugar da estratégia e do pensamento político com muita manipulação a alimentar a máquina do populista”. Questionado sobre como se combate este fenómeno, o autarca de Oeiras direciona a conversa para Passos Coelho.

Recorda o episódio, ocorrido na última quarta-feira, em que o ex-primeiro-ministro considerou que o Chega não é um partido antidemocrático. E rapidamente passou para confidenciar uma conversa pessoal que teve com Passos. Isaltino disse que lhe perguntou porque não colou o partido de André Ventura ao populismo.

“Sabem qual foi a resposta dele? Ó Isaltino, populistas são todos, atão este governo não é populista? É o mais populista de todos. E o nosso Presidente, não é populista? São todos populistas, os populistas estão em todo lado”, contou.

Isaltino ouviu, mas pensa de outra forma. Para ele, o populismo é outra coisa, é a fronteira entre a verdade e a mentira. “E a maior parte dos políticos portugueses não diz a verdade”, sugere.

"[Isaltino revela conversa com Passos Coelho] Ó Isaltino, populistas são todos, atão este governo não é populista? É o mais populista de todos. E o nosso Presidente, não é populista?"

A tertúlia entrou então num período de assuntos avulsos, mas em que a dignidade era alegadamente o farol.

Questionado sobre a revolução das redes sociais e da suposta facilidade com que comentadores - mesmo os menos preparados pululam na televisão -, o orador disse que, antes, as “pessoas tinham medo de ser ignorantes e hoje não”.

“Hoje tudo é professor catedrático, tudo fala de cátedra."

"Generais de aviário" e "portugueses cobardes"

E partiu deste ponto para chegar à guerra na Ucrânia e aos comentários nas televisões. Isaltino colocou a mira os generais. Para o autarca, por cada “pontapé que se dá aparece um general na reserva”.

Esses generais, segundo o autarca, nunca foram à guerra. “São generais de aviário. Nunca comandaram um soldado”, disse.

Depois de debitar números relativos às várias patentes do Exército, Isaltino constatou: “Não há sequer um praça para um general.” Mais risos a ecoar na plateia.

Também sorridente, Isaltino repete a ideia: “Temos um capitão ou um tenente a dar ordens a meio soldado. Isto diz tudo."

Do Exército, Isaltino passou para os portugueses. Sem parar atirou: “Acho que os portugueses de uma forma geral são cobardes. São mesmo cobardes, têm medo de tudo, é difícil encontrar uma pessoa corajosa”.

"São generais de aviário. Nunca comandaram um soldado"

E justifica o porquê da alegada cobardia nacional. Nada mais nada menos, porque sempre que entra numa rede social e nas caixas de comentário o criticam, ele escreve algo que contradiz o maldizente, com um “olhe que não”, e quase todos se calam.

“Mas eu não posso estar ali sempre agarrado a coisa”, terminou.

Já ia longa a preleção sobre a “Dignidade no exercício de funções públicas”, quando foi pedido à estrela do evento - que chegou a ser apelidado de “pop star do concelho” na introdução de uma pergunta do público - a terminar a frase “Eu Isaltino..."

Sem hesitar, retorquiu: “Tenho um gosto enorme de dizer eu Isaltino Morais, um homem bom."

[o texto foi editado às 17h40 acrescentado as decisões posteriores do Tribunal da Relação e do Supremo que reduziram a pena inicial aplicada ao autarca de Oeiras de sete anos para dois anos e fizeram cair as condenações por corrupção passiva e abuso de poder]