E se uma lei acabasse com os estrangeirismos em Portugal?
14-08-2019 - 13:50
 • João Pedro Barros

Ministro francês da Cultura colocou o debate sobre a influência anglo-saxónica na ordem do dia, ressuscitando uma lei com 25 anos. Especialistas ouvidos pela Renascença consideram que “o panorama português é bastante viável”, mas há que manter vigilância.

Quem tem mais de 50 anos ainda se deverá lembrar do domínio do francês em Portugal como segunda língua. Porém, nas últimas décadas, o inglês tem-se espalhado pelo mundo como uma mancha de petróleo e ameaça o próprio hexágono, convertido numa espécie de aldeia de Astérix rodeada pelo “exército” anglo-saxónico.

Em França, a resistência continua e o ministro da Cultura, Franck Riester, resolveu agitar as águas há uma semana, com um "tweet" a pedir aos cidadãos que “digam as coisas em francês”. Logo no dia seguinte, o “The Guardian” brincava: Estará o inglês a destruir a língua mais “sexy” do mundo e “l’amour” a ser substituído por “love”?

E em Portugal, também precisamos de uma chamada de atenção para deixar de ir ao "shopping" e voltar a ir ao centro comercial? “Seria exagerado algo do género. Comportamo-nos bastante bem com aquisições estrangeiras, não há casos de alarme nem de muito exagero, tirando os economistas. O panorama português é bastante viável e o facto é que o problema não se põe entre nós”, responde à Renascença o linguista e historiador da língua portuguesa Fernando Venâncio.

Maria Manuel Baptista, professora catedrática da Universidade de Aveiro e diretora do programa doutoral em Estudos Culturais, tem uma visão semelhante, se bem que acrescente um “mas”: o movimento do inglês é “poderosíssimo”, mas não se pode menosprezar as outras línguas.

“Não acho que venha mal ao mundo de se ir integrando algumas palavras de origem anglófona, todos sabemos que a língua é um corpo vivo. Isso não põe em causa a língua portuguesa, o que põe é acharmos que ela é incapaz, inferior, desadequada para o que queremos expressar, seja a nível tecnológico, de ciência e no dia a dia. Não sendo polícia da introdução entre os meus alunos de termos em inglês, recuso-me a dar aulas ou escrever apenas em inglês”, declara à Renascença.

Na resposta ao “tweet” do ministro francês da Cultura choveram críticas nas redes sociais, nomeadamente lembrando que o Presidente Emmanuel Macron usa frequentemente termos anglo-saxónicos, descrevendo até a França como uma "Start-Up Nation". Terá a iniciativa de Franck Riester algum impacto ou será como atirar um copo de água para uma floresta em chamas?

Ressentimento francês ou defesa da língua?

A intervenção pública surgiu a propósito dos 25 anos da lei Toubon, que obriga, por exemplo, toda a publicidade a ser escrita em francês. Algo que está a ser contrariado por exemplos como os da Air France (que usa o ‘slogan’ “France is in the air”, ou “A França está no ar”) e do comité organizador dos Jogos Olímpicos de 2024, em Paris, que tem empregue a frase “Made for Sharing” (“Feito para partilhar”). O governante quer uma aplicação mais musculada e estrita da lei.

“Sobretudo na lógica audiovisual, a França tem sempre tentado ser um contraponto, num processo às vezes feito através de legislação forte para proteger a língua e a cultura. Isso é legítimo, mas às vezes vem acompanhado de um certo ressentimento de se ter perdido o poder hegemónico e que provavelmente não voltará mais”, ressalva Maria Manuel Baptista.

Fernando Venâncio nota que as “intervenções voluntaristas” na língua são quase sempre votadas ao fracasso: num país democrático não se pode proibir e impor palavras. Porém, os governos franceses têm tido uma grande preocupação em responder à evolução tecnológica com novos signos.

“Para ‘software’ foi inventado ‘logiciel’ e foi um sucesso, usa-se 10 vezes mais do que ‘software’. Em contraponto, para ‘email’ inventaram nos anos 80 ‘courriel’, que não é um sucesso; email continua a usar-se nove a 10 vezes mais”, exemplifica.

Historicamente, é curioso verificar que, ao longo da história, nomeadamente na Idade Média, o inglês adotou “dezenas de milhares de palavras francesas”, como ‘beauté’, de ‘beauty’, e ‘fashion’, de ‘façon’.

“O inglês não teve resistência nenhuma em adotar essas palavras, assim como muitas de outras línguas. Em França é ao contrário, é tudo vigilância e resistência, pelo que se compreende que haja uma lei que põe certos limites à entrada de anglicismos. Nós não temos essas resistências, damo-nos muito bem com palavras estrangeiras, importa sim não exagerar, ser vigilante e pedagógico”, frisa o linguista.

Portugal, país aberto aos estrangeiros

Seremos afinal de contas um povo positivamente aberto a outras culturas ou corremos o risco de exagerar porque “a língua inglesa fica sempre bem”?

“Os usuários têm de usar a língua aportuguesando ou produzindo e criando novas palavras e isso tem a ver com a relação cultural de um povo com a próprio língua. Diz-se que somos tradicionalmente mais adaptáveis à diferença, abertos, somos um país de turismo, acolhedor, a nossa imigração adapta-se muito bem... Mas temos, por outro lado, alguma dificuldade em não absorver tudo o que está à nossa volta”, nota Maria Manuel Baptista.

Fernando Venâncio acha que há casos de “perfeito exagero” e destaca os economistas, que vivem num mundo cheio de CEO, que estão integrados num ‘board’ cheio de ‘know-how’, onde decidem sobre ‘takeovers’ e ‘joint-ventures’, de acordo com um ‘business plan’ aprovado pelo ‘chairman’.

“Temos termos próprios adequados, não há necessidade de falar num 'shopping', por exemplo, temos centro comercial. Há uma certa vaidade, digamos vontade de mostrar conhecimentos ou de um certo exibicionismo. Isso faz parte da nossa atitude com a língua, são aspetos menos agradáveis mas fazem parte dela. Importa aí não exagerar, ficarmos por aquilo que é adequado e que se tornou normal”, analisa.

A face positiva desta atitude é a abertura perante as outras culturas. “Somos bastante diferentes do francês. Também se dá o caso de nós próprios termos qualquer coisa de cosmopolitismo. É uma coisa que o francês não tem e o espanhol também não, de maneira nenhuma. Sentimo-nos à vontade em ambientes estrangeiros, mesmo num contexto mais vasto. Isto traduz-se no emprego de termos estrangeiros que adotamos e aportuguesamos, de tal maneira que nem os reconhecemos como tal”, conclui Fernando Venâncio, que se licenciou e doutorou na Universidade de Amesterdão, tendo vivido muitos anos na Holanda.

A língua é poder

Para Maria Manuel Baptista, é pena que este assunto seja visto muitas vezes numa perspetiva “anedótica” e “episódica”, como por exemplo na crónica do “The Guardian”. Na visão da professora da Universidade de Aveiro, isto é a “ponta do iceberg de movimentos culturais, políticos, económicos e geoestratégicos muito mais profundos”.

“A questão da língua está muito ligada às questões de poder. Quando olhamos para a história da Europa, já desde a época medieval encontramos as primeiras tentativas de tornar hegemónica uma língua. No caso era o latim, que era a língua de comunicação na Europa, pelo menos entre uma elite classe intelectual e religiosa, e que progressivamente é substituído pelo francês, por via da escolarização da cultura europeia”, recorda.

Os alunos que a professora recebe já são, hoje em dia, “praticamente bilingues”, tal a influência do inglês no dia a dia, que se tem acentuado ainda mais com a adoção de novas tecnologias. No entanto, o português deve continuar a ter um papel, nomeadamente como língua de ciência; por isso, a docente rejeita a ideia de que as aulas na Universidade de Aveiro possam, num futuro próximo, ser todas lecionadas em inglês.

“As pessoas já têm até dificuldade em pensar a partir do português. As estruturas são diferentes, não é só uma questão de vocabulário e estrutura, é uma forma de pensar e colocar os assuntos. Ainda bem que os alunos entram muito rapidamente no inglês, porque isso lhes lhes abre horizontes fantásticos. Quanto a mim, não evito falar o inglês, que é absolutamente essencial para quem está nas universidades, mas tenho uma grande insistência em não abandonar o português”, explica.

Conclusões: o domínio anglo-saxónico não pode ser travado por decreto – dificilmente os efeitos da lei Toubon podem ser ampliados, nomeadamente entre os mais jovens – e é avassalador. “Quando falamos de globalização, falamos sempre de globalização em língua inglesa. Os franceses nunca se recompuseram desta dificuldade em impor a sua língua como uma língua franca”, frisa Maria Manuel Batista. No entanto, o papel do inglês como idioma de comunicação internacional não deve impedir as outras línguas de continuar a crescer e adaptar-se às novas invenções e organizações sociais.

Por exemplo, costuma escrever a palavra ‘email’? “É um caso paradigmático, é complicado dizer ‘vou mandar uma mensagem eletrónica’ ou ‘vou dar-te o meu endereço eletrónico’. Talvez não tenhamos ainda inventado a palavra que se tornaria frequente nos nossos lábios. Um dia, alguém pode vir a criá-lá”, prevê Fernando Venâncio.