“Não chega ir à missa, confessar-se na Páscoa e rezar”
25-04-2019 - 23:00
 • Ana Catarina André

Do tempo em que chorava na almofada por causa das prostitutas, passando pelos anos em que viveu no Brasil e pela chegada do cancro. Leonor Xavier participou na iniciativa E Deus Nisso Tudo, onde revelou que não quis escrever a biografia da irmã Lúcia.

Na adolescência era “beatésima” – uma palavra que a própria inventou para se descrever. Hoje faz parte do movimento Nós Somos Igreja, associado a uma “ala mais vanguardista” do catolicismo. Leonor Xavier, jornalista e escritora, esteve à conversa com Maria João Avillez, no âmbito das conversas E Deus Nisso Tudo, que decorrem semanalmente na Igreja do Campo Grande, em Lisboa.

“Lembro-me de fazer campanhas pela pureza, pelos impuros, pelos que não iam à missa. Chorava, durante a noite, encostada à almofada por causa das prostitutas, por causa dos homens que cometiam maldades, por causa dos enfermeiros que trabalhavam na noite de Natal – essas coisas. Sentia que carregava o peso do mundo em mim”, recordou.

Atualmente, como membro do movimento Nós Somos Igreja, pretende que sejam “cumpridas as intenções do Concílio Vaticano II”. “Quando disseram ao Papa João XXII que o Concílio ia ser muito perigoso, ele disse: ‘Não tenho medo das correntes de ar’”, referiu, explicando que o movimento deseja uma hierarquia eclesial menos centrada, está preocupado com o ambiente e com os direitos humanos, tem “uma posição em relação ao celibato dos padres” e pretende “uma revisão” de matérias ligadas à sexualidade e aos “ministérios ordenados”.

A oração faz parte da sua rotina diária. “Não sou nada de rezar Terços e Ave-marias, ou de deixar de comer chocolate na Quaresma. Para mim, esta dimensão da fé é presença constante e jubilosa. Que bom que é viver, termos pensamento, espírito e corpo.” E diz: “Esquecendo as narrativas de paixão, os Evangelhos são textos de grande alegria e de convivialidade. Jesus estava sempre com pessoas, almoçava e jantava, conversava.”

Para Leonor Xavier, “os cristãos no mundo de hoje não podem ser passivos”. E afirma: “Não chega ir à missa, confessar-se na Páscoa e rezar”. A ideia – refere – é várias vezes abordada pelo Papa Francisco, uma “figura marcante do século” que tem na misericórdia “uma palavra-chave da sua pastoral”.

“Ele não nos desumaniza. Sendo jesuíta, e sendo intelectual, não é superior à nossa simplicidade e às nossas ignorâncias.”

A escritora, que nasceu em 1943, esteve afastada da política no período salazarista. “Eu era despolitizada. O meu pai era de uma família de oposição ao regime. Como era muito levada da breca, tinha terror de que eu assinasse papéis. Se calhar estaria na clandestinidade, se tivesse tido namoro com um comunista. Tudo é possível”.

A mãe de Michel Temer e a sorte de ter cancro em Portugal

Era má aluna a matemática, a física e química, mas boa em línguas. “Todos nós nascemos com jeito para alguma coisa e, no meu caso, tem sido andar por aí a contar as coisas”. Começou a escrever diários aos 13 anos – chegou mesmo a escrever um diário da família. “Tenho sempre um caderno e uma caneta onde anoto as coisas engraçados que oiço. Costumo dizer que é o meu garfo e a minha faca”, contou.

Em 1975, já casada e com três filhos, emigrou para o Brasil, onde permaneceu durante mais de 10 anos. “Olho [para esse período] como uma operação de adição na minha vida. Percebi que o mundo não é esta coisa a preto e branco que vivia em Portugal”, recordou. Foi uma mudança dolorosa. Leonor, que vivera no ambiente lisboeta protegido, sentia-se infeliz e perdida. “[No Brasil], percebi o que era o medo, o perigo, a consciência, a formação, a liberdade individual.” Foi lá, também, que conheceu destacados intelectuais brasileiros. “Fomos a um cocktail e eu estava lá, num canto, muito chorosa – estava um calor mortal, em Março, e eu com roupas de inverno e muito triste, porque achava que Portugal era o centro do mundo. Uma senhora disse-me: ‘Leonor, você tem tanta sorte, fala a língua. Eu vim da Síria, com quatro filhos e mais um na barriga. O meu marido tinha emigrado para aqui e era mascate [vendedor ambulante], em Minas Gerais’. Aí tomei consciência de que há outras pessoas, outras vidas”. E acrescenta: “O engraçado é que essa senhora era a mãe deste terrível Michel Temer, que se tornou presidente. O Temer era um dos professores que pertencia a esse grupo”.

Com uma relação muito próxima com a escrita, publicou os primeiros livros na década de 1980. É autora de romances, crónicas, ensaios e biografias. “O padre Tolentino [hoje bispo] queria que eu fizesse a biografia da irmã Lúcia. Disse-me para ler as memórias delas. Achei aquele ambiente tão aterrador que lhe disse: ‘Nem morta. Vou [antes] saber o que é a peregrinação na vida das pessoas’. Assim nasceu Peregrinação, que Tolentino Mendonça acabaria por apresentar.

Em 2013, enfrentou com naturalidade a chegada do cancro. “É o ciclo da condição humana. Penso assim: ‘Que sorte que tenho de não estar no Bangladesh, no Egipto ou no interior do Brasil, ou sei lá onde?’ Temos o serviço nacional de saúde, médicos maravilhosos e eu justamente por ter nascido em Lisboa, ter aprendido a exprimir-me e a procurar os sítios certos, sinto que tenho de dar graças a Deus constantemente. Vivemos num mundo onde a maior parte das pessoas não tem acesso [a cuidados].” Sente-se uma privilegiada. “Sou muito protegida e acho que tive sempre essa dimensão de fé dentro de mim”.