Financiamento da greve dos enfermeiros. O populismo está a chegar aos movimentos cívicos?
09-02-2019 - 09:00
 • Joana Gonçalves

O fenómeno da atribuição de donativos anónimos a trabalhadores em greve tem levantado questões de legitimidade e transparência. Especialistas em direito do trabalho e estudos sociais reconhecem o novo fenómeno e não excluem a possibilidade de ascensão de um movimento populista.

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A segunda greve cirúrgica dos enfermeiros recebeu apoio de uma plataforma de angariação de donativos anónimos. Uma ação que levantou dúvidas, esta semana, ao Presidente da República, que aponta problemas legais ao “crowdfunding”.

Entrevistado pela Renascença, Elísio Estanque, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, reconhece neste novo movimento cívico uma estreita ligação ao populismo, em ascensão na Europa. Já Luís Gonçalves da Silva, professor de Direito da Universidade de Lisboa, não tem dúvidas e questiona a legitimidade e transparência do processo.

Com início no passado dia 31 de janeiro e fim previsto para o dia 28 do presente mês, a segunda greve às cirurgias foi convocada por dois sindicatos de enfermeiros, depois de não terem chegado a acordo com a ministra da Saúde, quanto à revisão da grelha salarial e à passagem da idade da reforma para os 57 anos.

O entendimento falhou e, desde então, a relação entre Governo e enfermeiros tem vindo a deteriorar-se.

Depois de aprovada em conselho de ministros, foi publicada na passada sexta-feira em Diário da República a portaria que decreta com efeito imediato a requisição civil dos enfermeiros que aderiram à greve nos centros hospitalares onde não foram cumpridos os serviços mínimos.

No mesmo dia, o Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (SINDEPOR) anunciou que vai interpor uma providência cautelar para suspender a requisição civil, que produz efeitos até ao último dia do mês.

Os enfermeiros tinham já antes feito uma greve cirúrgica que se prolongou por 40 dias e levou ao cancelamento de mais de 7 mil cirurgias. Em ambos os casos, o impacto financeiro do protesto no bolso dos enfermeiros foi combatido através do apoio de uma plataforma de angariação de donativos anónimos.

A primeira campanha ultrapassou os 360 mil euros e a segunda soma mais de 420 mil euros angariados.

"Primeiro, é que quem promove o 'crowdfunding' é um movimento cívico, um movimento cívico não pode declarar greve. O 'crowdfunding' é legalmente previsto para alguém reunir fundos para desenvolver certa atividade. Legalmente, não pode um movimento cívico substituir-se ao sindicato", defendeu Marcelo Rebelo de Sousa, na estreia do programa “Circulatura do Quadrado”, da TVI24.

A bancada parlamentar do Partido Socialista anunciou a intenção de avançar com legislação que proíba donativos anónimos de trabalhadores em greve.

As novas regras para o financiamento colaborativo, que entraram em vigor em 2018, só exigem identificação a quem doar mais de 100 euros.

O populismo está a chegar aos movimentos cívicos?

Na passada sexta-feira, o Presidente da República apelidou de “fenómenos inorgânicos no plano sindical”, o novo desafio de financiamento colaborativo a trabalhadores em greve.

Em entrevista à Renascença, Luís Gonçalves da Silva, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, tem algumas reservas em partilhar esta concepção.

“Não estou seguro que estejamos perante um fenómeno inorgânico, antes pelo contrário, estamos perante um fenómeno orgânico que, com o intuito de contornar a lei, recorreu a mecanismos de difícil controlo por parte de autoridades públicas”, explica.

De acordo com o especialista em direito do trabalho, os sindicatos puseram em causa aquilo que é uma proibição, ao aceitar financiamento, ainda que indirecto, de uma possível entidade que está impedida de o fazer.

“Não excluo a hipótese de serem associações que, de acordo com o quadro legal não poderiam fazê-lo, isto é, não podiam financiar, ainda que indirectamente, os sindicatos. A partir do momento que há um financiamento, ainda que indirecto, que apoia a luta do sindicato, parece-me que estamos, claramente, perante uma violação da lei.”, acrescenta.

"Estamos, claramente, perante uma violação da lei"

Para Luís Gonçalves da Silva, esta é uma situação que impõe intervenção rápida da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), entidade responsável por averiguar a licitude do financiamento.

“Ao contrário de que tem sido referido, a ASAE controla questões burocráticas e essas também devem ser controladas, mas o que está em causa é saber se estamos ou não perante um financiamento indirecto de entidades que estão proibidas de o fazer. E isto só sabemos quando identificarmos os respectivos donatários, uma ação que compete à ACT”, esclarece.

Em entrevista à Renascença, Elísio Estanque, professor da Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, reconhece neste novo movimento cívico uma estreita ligação ao populismo, em ascensão na Europa.

“Independentemente, de muitas dessas reivindicações serem mais justas e outras menos justas, o que é certo é que a tendência geral é para o acentuar de uma lógica mais neocorporativista”, explica.

“Portanto, dentro dessa dinâmica neocorporativa, em que as referências ideológicas tendem a esbater-se, creio que é mais fácil a penetração de interesses de forças, de poderes, de dinâmicas, que vão mais ao encontro desta onda populista que está a crescer na Europa”, acrescenta.

"Uma coisa são os donativos e os apoios solidários dos representados nas estruturas sindicais, outra coisa são financiamentos duvidosos e obscuros"

Se por um lado o contexto de recuperação económica e a disponibilidade do Governo para negociar motivaram a perspectiva de melhoria no universo laboral, “por outro lado, há uma conotação de influências que são muitas vezes difusas, podem ser pequenos grupos ou até mesmo interesse mais ou menos anti-sistémicos, que se escondem por detrás da narrativa em defesa dos trabalhadores”.

Este é um novo fenómeno que levanta vários desafios ao universo sindical, laboral e legal. Luís Gonçalves da Silva está convencido de que o direito tem mecanismos para reagir a estes novos movimentos, mas não nega que ainda não foram posto em prática.

“Agora, o que não podemos é ficar, perante a novidade dos fenómenos e perante a agressividade e os efeitos danosos dos mesmos, bloqueados à espera ou que o tempo passe ou que os fenómenos terminem. Isso seria uma forma de permitir, reitero, que aqueles que mais carecem de proteção, mais desprotegidos ficassem”, defende.

Autor do artigo "Digitalização e precariedade laboral: novos desafios para o sindicalismo e os movimentos sociais no contexto português”, Elísio Estanque reconhece a relevância de movimentos cívicos na manutenção de uma democracia representativa e o potencial revitalizante dos atores clássicos, como partidos e unidades sindicais.

Porém, relembra que "a partir do momento, em que há um certo esvaziamento dessas forças, os movimentos podem disparar e atingir contornos desregulados onde tende a aparecer mais a radicalização, a violência e o conflito aberto. Há sempre o risco desse contágio nos poder vir a atingir a nós, em Portugal, que somos tradicionalmente mais tranquilos".