"A vergonha de Vila Real” é um edifício de Nadir Afonso
17-05-2018 - 08:00
 • Olímpia Mairos

Movimento de cidadãos quer preservar o edifício da Panreal, projetado por Nadir Afonso e que se encontra em avançado estado de degradação.

Data de 1965 e é a única obra assinada pelo arquiteto Nadir Afonso em Vila Real. O edifício da panificadora “Panreal” destaca-se pela sua linha moderna para a época e até pela sua localização, perto da universidade. Funcionou até aos anos 90, quando entrou em falência.

Trata-se de uma propriedade privada, mas que está deixada ao abandono, tomada pelas silvas, por animais abandonados e por grandes amontoados de lixo.

O edifício não tem portas, os vidros das janelas estão partidos, parte da cobertura está destruída e várias paredes interiores também. É visível a degradação em cada canto e nem o velho forno da antiga panificadora resistiu ao abandono. Ainda ali está, mas degradado, envolto em vegetação e lixo.

"Fui muitas vezes àquela padaria comprar pão quente. Trabalhava lá muita gente e era um edifício bem bonito”, conta à Renascença Elvira Silva, 70 anos, residente nas imediações.

“É a vergonha de Vila Real. Não condiz com uma cidade que queremos jeitosa, agradável e atraente para os muitos turistas que aqui passam”, acrescenta António Rodrigues, 68.

Marília Ervedosa, 66, recorda com nostalgia os tempos em que “fazia bolos ia lá cozê-los”. “Era uma coisa mesmo bonita e moderna e, agora, está tudo destruído e dá um mau aspeto à cidade”, lamenta.

A Panreal é um importante edifício da fase final do movimento moderno português, único na zona de Vila Real e um dos escassos exemplos de obras arquitetónicas de um dos maiores nomes do panorama artístico do séc. XX.

Apesar de Nadir Afonso raramente ser referenciado como arquiteto, esta é a área em que se formou e à qual dedicou grande parte da sua vida, tendo trabalhado com nomes da arquitetura moderna, como Le Corbusier, Óscar Niemeyer, Georges Candilis, Alex Josic, Shadrach Woods e Carlos de Almeida.

Grupo de cidadãos quer “devolver o edifício à cidade”

Se o abandono e avançado estado de degradação da panificadora têm vindo a suscitar indignação por parte da população de Vila Real, o arquivamento do seu procedimento de classificação volta a suscitar novas iniciativas. O recém-criado Movimento Pró-Nadir quer colocar de novo o assunto “em cima das mesas” e “devolver o edifício à cidade”.

“Este edifício tem muito valor, não só enquanto memória coletiva, que é talvez o mais importante, mas afetiva e também como um valor económico”, sustenta o arquiteto Gil Machado. O jovem arquiteto retém da arquitetura de Nadir Afonso as mesmas características que o artista colocava na pintura e quer que o edifício da Panreal se mantenha, se reabilite e se torne um edifício da cidade.

“É uma arquitetura muito alegre, muito fresca, muito dinâmica e sempre com uma ideia de cidade associada”, explica Gil Machado, considerando que “o edifício da Panreal dá muitos bons sinais para o futuro, se for conservado”.

O objetivo do movimento, segundo o arquiteto, é que o edifício “seja incluído num plano urbano que permita que se captem fundos para a sua reabilitação”.

A arqueóloga Mila Simões de Abreu, grande impulsionadora da preservação e classificação da Panreal, indica tratar-se de “um edifício único” e “raro em Vila Real”.

“'Nadir', em hebreu, quer dizer 'raro' e eu acho que, realmente, aquele é um edifício raro. Como edifício, não é um edifício de que goste muito, mas isso tem pouca importância. Eu também não gosto de Versalhes, também não gosto de tantos outros monumentos, mas isso não quer dizer que não lute para que eles sejam preservados”, afirma a docente da UTAD.

Apesar de em Portugal não se falar muito de arqueologia industrial, Mila Simões de Abreu considera que ela é um legado muito importante que existe no país e que “uma peça como aquela da Panreal é importantíssima e não podemos deixar que seja arrasada”, defende.

Para projetar a Panreal, Nadir Afonso inspirou-se num outro edifício que tinha feito em Chaves, mas o de Vila Real tem, segundo a arqueóloga, “uma história muito engraçada”.

“O edifício de Chaves tem o teto em betão. Quando foi feito o edifício em Vila Real, o engenheiro pensou que era um bocado difícil de mais fazer o betão e é por isso que a estrutura do teto é em metal”, conta Mila Simões de Abreu.

“O importante, agora, é preservar”, defende a arqueóloga, lembrando que “o edifício é privado e, portanto, a proteção do privado tem que estar sempre no horizonte, mas, neste momento - diz a arqueóloga - tenho a impressão que o proprietário está muito contente, porque quanto mais se fala, mais o preço sobe”.

“Não se compreende porque é que não há uma classificação célere”

Sobre a não classificação do edifício, Mila Simões de Abreu considera tratar-se de “um processo muito estranho”. “Foi muito rápido, entrou como processo em 2016, teve um segundo momento no seguimento da denúncia, em abril do ano passado, quando aconteceram algumas demolições e, portanto, passou menos de um ano. E fico um pouco surpreendida que não tenha havido um diálogo com ninguém”, refere.

Dinis Cortes, médico, natural de Vila Real, a trabalhar no Alentejo, também diz à Renascença não compreender a não classificação do edifício da Panreal e considera que “estamos a assistir a uma menorização de uma área, a da cultura, que é a área identitária do nosso país”.

“A classificação deste edifício, sendo da autoria de Nadir Afonso, seguramente tem valor patrimonial, identitário para a cidade e não se compreende porque é que não há uma classificação célere, no sentido de impedir a sua destruição”, sustenta.

Já a viúva de Nadir Afonso, Laura Afonso, manifesta o desgosto que é “ver uma obra daquelas a degradar-se de dia para dia” e está ao lado do movimento na luta “pela sua preservação”. “É uma dor no coração, porque trata-se de um edifício de referência, modernista, faz parte do património industrial e deve ser preservado”, afirma Laura Afonso.

A viúva do artista lembra-se bem que quem encomendou o projeto ao arquiteto flaviense “foi Manuel de Azevedo, do Marco de Canaveses, um rico industrial de panificação, e o construtor foi o senhor Camilo Fernandes, que era demasiado conhecido em Vila Real, que estava ligado também aos automóveis”.

Falar na velha panificadora de Vila Real é falar de memórias. Memórias que também cheiram a pão. “O professor Jorge Figueira, no catálogo de uma exposição que está atualmente no Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, em Chaves, escreve que associava sempre Nadir, desde criança, ao cheiro de pão fresco, pão quente”, conta Laura.

De entre os projetos mais marcantes da carreira do arquiteto Nadir Afonso destacam-se dois ligados à panificação: Panificadora de Chaves, em 1963, considerada de interesse público em 2006, e uma das 10 obras mais significativas da arquitetura portuguesa do século XX, e a Panreal de Vila Real, em 1965.

A Câmara de Vila Real só deseja que as coisas se clarifiquem o mais rápido possível e que seja encontrada uma solução para a Panreal. “Queremos urgência na resolução deste assunto”, afirma a vereadora da cultura da Câmara de Vila Real, Eugénia Almeida, considerando que “um projeto desta natureza” precisa de ser alavancado.

“Não é com meio milhão ou com um milhão de euros que vamos poder reconstruir. Porque uma ação emite uma consequência e a consequência é que nos preocupa, não a ação, porque a nós, obviamente, não nos custava nada classificar, se a consequência que adviesse daí fosse termos possibilidade de alavancar toda esta situação”, explica.

“Se houver linha de financiamento que nos sustente esta possibilidade, obviamente estamos a favor de poder continuar com isto”, conclui a autarca.

Arquivamento poderá ser alvo de reclamação ou recurso hierárquico

A decisão de arquivar o procedimento de classificação da antiga panificadora de Vila Real foi publicada pela Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), a 11 de abril, em Diário da República. O anúncio informa ainda que o imóvel “deixa de estar em vias de classificação, deixando igualmente de ter uma zona de proteção de 50 metros a contar dos seus limites externos”.

O procedimento de classificação foi aberto a 11 de abril de 2017, pela DGPC, depois de denúncias de alegadas demolições parciais na fachada e cobertura do já muito degradado edifício Nadir Afonso.

O processo já se encontrava em análise na Secção de Património Arquitetónico e Arqueológico do Conselho Nacional de Cultura, mas, devido às denúncias de destruição do edifício, a diretora-geral do Património Cultural, Paula Silva, decidiu pela abertura do procedimento de classificação para impedir danos continuados no imóvel.

De acordo com o anúncio publicado no DR, a decisão de arquivamento poderá ser alvo de uma reclamação ou recurso hierárquico, sem prejuízo, no entanto, da possibilidade de impugnação contenciosa.

O que pode ser a Panreal? Desejos…

“Gostava que fosse um edifício cultural, ligado a Nadir Afonso, e, porque não, ligado ao pão e ao barro que têm muitas semelhanças”. Gil Machado, arquiteto.

“Eu gostava muito de ver ali um centro em que os estudantes da UTAD pudessem estudar, pudessem comer, ouvir música, pudessem divertir-se. Um multifunções”. Mila Simões de Abreu, arqueóloga.

“A antiga panificadora devia ser uma espécie de cartão de visitas de Vila Real. Podia ser um centro de receção de turistas”. António Rodrigues, habitante de Vila Real.

“Quem me dera que a Panreal voltasse a ser uma boa padaria”. Elvira Silva, habitante de Vila Real.

“Eu só queria ver o edifício recuperado. Não importa o que ponham lá, o que importa é que terminem com aquela vergonha”. Marília Ervedosa.

“Um projeto ligado ao turismo, para que o turista que vem ao Douro, viesse aqui, a Vila Real, e fosse a Chaves. E seria um circuito muito interessante para o turismo cultural”. Laura Afonso, viúva de Nadir Afonso.

“Somos a favor de que as coisas se clarifiquem o mais rápido possível. Nós apenas dizemos que queremos urgência na resolução deste assunto”. Eugénia Almeida, Câmara Municipal de Vila Real.