“A Catalunha só quer o que a Escócia já teve”
05-09-2016 - 08:30
 • José Bastos

“O problema só tem uma solução: um referendo”, afirma o número um da diplomacia catalã, que está em Lisboa, para abrir, esta segunda-feira, a delegação da Generalitat.

Se Raúl Romeva tivesse sido convidado a titular esta entrevista, a opção, aposta-se, teria incluído o adjectivo “inevitável”. O primeiro responsável formal da diplomacia do governo catalão usa e abusa do termo “inevitável”, tendo como pano de fundo o compromisso de que, no Verão de 2017, os catalães vão mesmo decidir se querem constituir um estado independente.

O "conseller" de assuntos externos da Generalitat abre formalmente, esta segunda-feira, a delegação do governo autonómico em Lisboa, “um espaço de diálogo”, a antecâmara de uma eventual embaixada. Se a Catalunha fosse independente, Romeva seria o ministro dos Estrangeiros e o antigo jornalista Ramon Font o embaixador na capital portuguesa. Mas (ainda?) não é.

Romeva esbanja contundência nas críticas aos partidos “espanholistas”, PP e PSOE. “A atitude face à Catalunha rende votos. É triste”, acusa. O "conseller" sustenta que a crise de governabilidade de Espanha já estaria desbloqueada, sem necessidade de recurso a terceiras eleições, se populares e socialistas “permitissem o referendo catalão”.

Ainda em Barcelona, em entrevista à Renascença, Raúl Romeva diz não concordar com a opinião de que mais um estado independente retira importância estratégica a Portugal no contexto ibérico. “A Portugal convém muito que Espanha e Catalunha se entendam, colaborem e dialoguem”.

É o primeiro responsável formal da diplomacia da Catalunha. Tem a tarefa de internacionalizar o movimento soberanista, a necessitar de reconhecimento externo. Em que fase exacta está o processo?

O processo catalão está exactamente na fase em que as últimas eleições democráticas [em 27 de Setembro de 2015] o deixou. Ou seja, o mandato que recebemos no dia 27 permite-nos preparar o processo de independência, permite-nos construir as estruturas de que necessitamos para ser um dia um estado independente e permite-nos também preparar o que deverá ser a ratificação democrática dessa decisão.

É nesta fase que está o processo catalão. A partir do mandato que lhe foi conferido pelo Parlament, o parlamento catalão, o governo está a preparar as estruturas para que, num próximo momento, o povo – através da democracia, via referendo ou via eleições – possa decidir se a Catalunha será ou não um Estado.

As crises que fustigam a Europa – Brexit, migração, emprego – não retiram do primeiro plano processos como o da Catalunha?

Não. Ao contrário: acho que o processo catalão está relacionado. Desde há muito que a Europa vive várias crises, mas há uma que é muito importante: a crise do défice democrático. A Europa tem uma necessidade de capitalização democrática, de se reforçar do ponto de vista democrático. O que se está a passar na Catalunha tem a ver com este cenário. O que se passa na Catalunha não é mais de que o exercício de vontade de uma parte muito importante do conjunto dos cidadãos solicitando poder expressar-se democraticamente e poder decidir democraticamente se quer ter relações com o estado espanhol, o estado francês ou o estado português num plano de igualdade. Ou se quer continuar a fazer parte do estado espanhol.

Insisto num ponto: trata-se de um exercício democrático. Esta é a chave de todo o processo. A Europa tem hoje muitos problemas, mas, analisando o que se passa na Catalunha, a essência do debate também oferece soluções a alguns dos problemas que se colocam à escala europeia. Os dois debates, na minha opinião, estão relacionados. Têm a ver com a democracia.

Conhecemos a posição de Madrid e da União Europeia. Como pode a Catalunha captar esse capital de simpatia externa para a sua causa e, nesse contexto, que importância atribui à delegação em Lisboa e ao papel de Ramón Font?

A primeira parte da pergunta é importante. Como conseguir gerar simpatias? Neste momento, é importante que a Catalunha se possa explicar. O elemento fundamental é que todos os países – sobretudo os governos europeus – conheçam em primeira mão qual é a realidade da Catalunha.

A primeira função – de que me responsabilizo pessoalmente – é explicar-nos. Estamos onde estamos depois de ter tentado uma reforma constitucional, de tentar fazer – de mil formas diferentes – um referendo e de ter tentado aprovar um estatuto de autogoverno que satisfizesse amplos sectores da sociedade.

Estamos onde estamos depois de ter chocado sempre de frente com uma posição bloqueadora do governo central espanhol, eliminando qualquer margem de manobra. Agora, o que estamos a dizer é “vamos procurar outra solução, uma solução democrática”.

Como conseguir simpatias para a causa? Explicando que queremos resolver um problema e não existe outra solução que não seja a que está neste momento sobre a mesa. Como queremos resolver o problema, a melhor forma de o fazer é através da democracia, é via democracia.

Neste processo qual é o papel da delegação de Lisboa? Portugal é um país com o qual, na Península Ibérica não só a Espanha no seu conjunto, mas a Catalunha em particular, tem relações históricas privilegiadas. Na Catalunha, temos muito claro que queremos criar um novo marco de relações, não no sentido do isolamento ou separação.

Queremos um novo quadro de relações muito boas: com Espanha, com Portugal, França, Itália, Alemanha. A partir daqui, é nossa intenção que com aqueles países e sociedades – desde logo a espanhola, mas também a portuguesa e as europeias - com que temos mais em comum possamos ter as melhores relações possíveis.

O papel das delegações da Catalunha no exterior é o de construir espaços de diálogo, de intercâmbios, espaços geradores de oportunidades e essa é a vontade que – enquanto governo – estamos a cultivar também em Lisboa através da abertura desta delegação encabeçada por Ramón Font.

Mas de que forma Portugal pode contribuir para o processo catalão quando boa parte da elite académica e política defende que uma Espanha unida é melhor para a defesa dos interesses portugueses?

O mais importante para todos é uma situação de cooperação. Ninguém ganha num cenário de conflito permanente. A Espanha não ganha. A Catalunha não ganha. Portugal não ganha. A Europa não ganha. Penso que o discurso devia começar a mudar.

Quando alguém diz que uma Espanha unida é melhor para os interesses de Portugal, devia analisar algumas questões. É bom para Espanha o bloqueio permanente à Catalunha? É bom para Espanha que as oportunidades económicas geradas na Catalunha sejam prejudicadas e condicionadas? Não é, evidentemente, bom para a Catalunha, mas também não é bom para Espanha. Se não é bom para Espanha, não é bom para a Europa.

Queremos construir um espaço de cooperação baseado em interesses partilhados. A Espanha unida não é o quadro actual. Procurar interesses comuns é, afinal, a essência da União Europeia. É isso que estamos a procurar na Catalunha. Buscar interesses comuns e construir relações nessa base. Construir essa relação com Espanha, claro, e com Portugal.

Creio que a Portugal convém muito – tal como ao resto da Europa – uma situação em que a Espanha e a Catalunha trabalhem em conjunto, se entendam, colaborem, dialoguem e procurem oportunidades comuns. O que não beneficia ninguém é a situação actual: a de um governo espanhol que, constantemente, usa o cenário na Catalunha para conseguir votos no resto de Espanha. É triste.

Vou ser muito crítico. No fundo, ao governo do PP – mas também em parte ao PSOE – a atitude de afrontar a Catalunha rende-lhe lucros eleitorais. Ao PP, a vida pode correr eleitoralmente bem, mas ao conjunto de Espanha não corre.

O impasse político em Madrid afecta, então, a busca de uma solução para a Catalunha...

É um factor chave. Escutando o discurso de investidura falhada, concluiu-se que o problema fundamental para o senhor Rajoy é a Catalunha. Mas nós, na Catalunha, oferecemos uma solução: chama-se democracia. Chama-se o “escute-se o povo”.

O facto de não termos hoje um governo em Espanha é um problema para todos. Mas a culpa não é da Catalunha. A responsabilidade é dos partidos maioritários em Espanha não terem conseguido colocar-se de acordo.

Mas só um quadro político diferente, a sair de novas eleições, é que poderá recuperar um diferente relacionamento constitucional entre Madrid e Barcelona?

Hoje por hoje, o problema só tem uma solução: um referendo. É a consulta à população. É poder votar. É permitir que o povo se exprima nas urnas. É, afinal, o que se passou na Escócia. Não estamos a pedir nada que seja diferente do que se passou na Escócia.

E esta solução foi proposta ao senhor Rajoy e ao senhor Pedro Sànchez. O senhor Rajoy ou o senhor Sánchez já, há muito, poderiam ser presidentes do governo se tivesse admitido no seu programa político, não apoiar, mas tão somente permitir, acentuo o "permitir", um referendo na Catalunha. Ou seja, não impedindo a realização dessa consulta.

Nem o senhor Rajoy nem o senhor Sánchez quiseram, nesta altura, aceitar essa possibilidade. Portanto, havia uma solução também para desbloquear a crise de governabilidade de Espanha que tinha directamente a ver com a via democrática. Há muito que temos alertado para esta saída.

Uma segunda mensagem é a de que se a proposta foi feita - e não foi aceite nem pelo líder do PP nem pelo líder do PSOE - o que respondemos é que temos um mandato democrático expresso no Parlament para fazer o que estamos a fazer. Mas temos sempre a porta aberta ao diálogo. Que ninguém se engane: estamos sempre dispostos a falar e a negociar.

Uma solução federalista poderia ser uma opção intermédia?

Com muita franqueza digo que, durante muitos anos, o federalismo era a solução. Essa era a proposta que, durante anos, acredito, gerava maior consenso na Catalunha. Durante muitos anos, foi sugerida desde vários sectores. O PP e o PSOE nunca aceitaram debater. A sugestão federalista foi feita sempre a partir da Catalunha, desde muito cedo, desde 1978, desde a etapa final da transição para a democracia.

O federalismo para ter sido uma solução precisava de ter sido defendido por alguém em Espanha e não apenas na Catalunha, mas não há ninguém a fazê-lo fora das fronteiras catalãs. Por isso, insisto em que a Catalunha, desde 1978, considerou a possibilidade. Até se voltou a tentar, com a mesma lógica, na reforma do estatuto autonómico de 2006, numa fórmula que nem sequer era de uma Espanha federal – estava a anos-luz do conceito – ,mas nem sequer esse quadro foi visto como aceitável pelo Partido Popular.

É neste cenário que finalmente surge a necessidade, insisto, de procurar uma solução. Nesta altura, se perguntar ao PP e ao PSOE se aceitam uma Espanha federal, vão-lhe responder que não. Vão dizer que não, porque não estão de acordo. Não o aceitam. Portanto, entre a situação actual, cada vez mais inaceitável, com a constante negativa às propostas que são feitas e uma solução viável, muita gente defende um “pois, vamos a votos”. Esta é verdadeiramente a questão de fundo.

No próximo domingo, assinala-se o dia nacional da Catalunha “Diada del Onze”. Vai ser um barómetro da pulsão nacionalista como em anos anteriores?

Nos anos recentes, já se contabilizaram quatro grandes mobilizações que reuniram dois milhões de pessoas por ano. No dia 11 de Setembro, vamos ter nova mobilização, mas também é verdade que, de um ponto de vista prático, os catalães já não estão a pedir, mas sim a fazer, a trabalhar. É um “já estamos a fazer isto, estamos preparados”. De resto, o slogan da jornada é um “Estamos prontos”.

A jornada será mais de trabalho. O momento já não é de pedir, mas sim de concretizar. Esse quadro explica-se pelo calendário que temos aqui no governo catalão. Assumimos o compromisso de que em Junho/Julho de 2017 – 18 meses depois de termos governo – teremos de apresentar à população uma proposta concreta para que os catalães possam votar. Isto marca também a ideia-chave em todo este processo, uma ideia é que o título de todo este processo na Catalunha: é a de que “é inevitável”. Digo-o com todo o respeito, mas digo-o com toda a determinação.

Queira ou não Madrid, a vontade popular será referendada?

O que nós teríamos preferido, o que sempre desejámos, o que sempre defendemos – e que ainda hoje continuamos a defender – é que estivéssemos, hoje em dia, a conduzir este processo em plena sintonia com o governo espanhol. Num acordo formal com o estado espanhol.

A nossa proposta é que se faça como se fez com a Escócia. Mas se com o governo espanhol - seja do PP seja outro, já veremos o que vem aí – este quadro não se resolve, não se percebe, não se aceita, não se concretiza, então, nós vamos seguir o nosso caminho. Porque temos a obrigação democrática de o fazer. É uma questão absolutamente fundamental.

Mas insisto: do que estamos aqui a falar é de democracia. Estamos a falar na necessidade de, no século XXI, os conflitos, as tensões, as dificuldades se resolverem através da consulta às urnas, pelo voto.

Nesta altura o que já estamos a preparar na Catalunha é esse momento de exercício da cidadania, esse momento de deliberação colectiva para decidir exactamente se a Catalunha quer ser um estado. Esse momento vai acontecer.