Quase 48 anos…
23-03-2022 - 07:56

Vivemos em democracia, podemos e devemos ser exigentes com os políticos e cumpridores no que nos toca.

Amanhã, 24 de março de 2022, o país celebra uma efeméride que não mais se repetirá: o dia em que o regime democrático supera em longevidade o regime autoritário que o antecedeu. A ditadura, primeiro militar, depois constitucionalizada e civil, começou a 28 de maio de 1926 e acabou a 25 de abril de 1974, durando 48 anos, menos cerca de um mês. A democracia de abril completa justamente hoje os mesmos 48 anos, menos cerca de um mês. E amanhã terá mais um dia…

Estamos em democracia há quase 48 anos; ou, se quisermos ser puristas, em liberdade aclamada desde abril de 1974, mas em democracia – constitucional, pluralista e na rota europeia – desde abril de 1976. Como celebrar este triunfo temporal? Que responsabilidades traz, ao país, passarmos a viver há mais tempo em liberdade do que o que os nossos pais e avós viveram em ditadura?

Nenhuma democracia é obra finita. O Estado Novo, esse sim, quis finalizar o tempo, congelar o país e fazer hibernar a História. A liberdade é uma condição existencial, um convénio coletivo e um consenso produtor de progresso – e, por tudo isso, uma obra em perpétua evolução. Dos «D’s» de abril (lembram-se os mais velhos), foi rápido e afinal pouco traumatizante “descolonizar”; o país levou uma década a “democratizar”, até 1986 (foi preciso Eanes, Soares, o FMI, a AD, Sá Carneiro, a revisão constitucional de 1982 e outra vez o FMI no tempo do Bloco Central, à porta da Europa da CEE). E “desenvolver” também se fez, é certo que com poucos recursos próprios e muitos recursos alheios, acelerando a urbanização, a terciarização, a generalização do ensino e a europeização (legal, institucional, cultural, mental, etc.) que nos tornou pertença, periférica ou na moda, esforçada ou de sucesso, de um clube de países ricos, embora hoje menos ricos ou mais incertos do que há três ou quatro décadas.

Estamos entre parlamentos e governos, em trânsito da geringonça desarranjada para a nova maioria absoluta. A pandemia ainda mexe, na fronteira para a endemia, e a guerra no Leste veio cavar incertezas. Há um certo país que permanece pobre; e a outra parte do país repousa num conforto afinal frágil. Sem dúvida que o progresso foi enorme neste último meio século: embora numa sociedade muito mais envelhecida, com um Estado social sobrecarregado e desafios climáticos, energéticos e geoestratégicos que preocupam todos, o Portugal de hoje – mesmo neste 2022 – vive muito melhor do que o de 1974, com mais saúde, educação, habitação, bens básicos e acesso à informação e à educação. Em quase 48 anos, Portugal fez o que pôde, o que soube ou o que calhou; escolheu o seu curso, quando não foi obrigado a trilhá-lo. Não há fatalismo nesta frase; há a constatação de que parte (quanta parte?) do nosso destino (das pessoas, como dos países) está nas mãos dos que o fazem.

Porque vivemos em democracia, podemos e devemos ser exigentes com os políticos e cumpridores no que nos toca. É a forma atual de sermos patriotas, mesmo sem nos embrulharmos na bandeira. Quanto aos políticos – todos – será urgente que percebam que já durando a liberdade há mais tempo do que durou a ditadura, o que de mau acontece no país já é da sua responsabilidade e não só dos lastros da História. Conta-se que quando formou governo, em 1980, Sá Carneiro disse aos seus ministros que o tempo de se queixarem dos seus antecessores se esgotava ao fim de seis meses; a partir daí, a culpa (também) era de quem estava. Parece-me um reparo pedagógico, a aplicar desde o governo à mais ínfima das funções. O fado da culpa alheia tem limites e o futuro está, como sempre, à espera.